A natureza precisa das pessoas

30 de August de 2024

Marcia Hirota* para o Valor Econômico

Imagine se pessoas comuns tivessem o poder de preservar áreas naturais e espécies ameaçadas, atuando diretamente na garantia de que as futuras gerações herdem um planeta mais verde e saudável? Isso, na verdade, já é possível desde 1990, com a promulgação do decreto que criou as Reservas Particulares do Patrimônio Natural (RPPNs). A partir daí, a conservação da natureza deixou de ser exclusividade do Estado.

Categoria prevista no Sistema Nacional de Unidades de Conservação, as RPPNs são criadas por decisão voluntária de proprietários de terras e reconhecidas pelos órgãos ambientais (federal no ICMBio, estaduais ou municipais) sem a necessidade de desapropriação. Isso significa que todo proprietário de terra pode ser também o guardião de um santuário ecológico, contribuindo de forma ativa e concreta para a proteção do nosso patrimônio natural.

O advento das RPPNs possibilitou uma grande transformação. Ao abrir espaço para que pessoas e empresas pudessem dedicar partes de suas propriedades à conservação ambiental, o Brasil ampliou sua rede de áreas protegidas e, mais do que isso, fortaleceu a participação social nessa gestão. Hoje, esse modelo colaborativo é essencial para enfrentarmos os desafios ambientais contemporâneos. Dados do Cadastro Ambiental Rural (CAR) mostram que 41,3% da vegetação nativa no Brasil está em áreas privadas – sendo que na Mata Atlântica esse percentual praticamente dobra (80%). Portanto, manter de pé o que resta da Mata Atlântica, bioma em que vive a maior parte da população brasileira, é uma tarefa na qual as pessoas, especialmente aquelas que são proprietárias de terras, grandes ou pequenas, têm uma importância primordial.

As 1.877 reservas privadas existentes hoje em todos os biomas brasileiros protegem 836.522 hectares, sendo que mais de 72% (1.358) estão na Mata Atlântica, segundo a Confederação Nacional de RPPNs. Essas reservas representam verdadeiros repositórios de biodiversidade, conectam fragmentos florestais preservados ou em recuperação e estabelecem corredores ecológicos que permitem a movimentação e a sobrevivência de diversas espécies animais e vegetais. Contribuem ainda para a proteção da água e outros serviços de grande valor ao próprio negócio e à sociedade e muitas delas atraem visitantes, hóspedes, estudantes, professores, pesquisadores e proporcionam experiências inesquecíveis.

A vida que floresce e se multiplica nesses espaços é algo que percebemos a olho nu. Já visitei várias reservas. Uma delas foi o Refúgio do Canto, RPPN estabelecida pelo professor universitário Rui Rocha e sua esposa Faura em Serra Grande, Ilhéus, na costa sul da Bahia, região reconhecida como uma das mais importantes para a conservação da biodiversidade arbórea global. Com a criação da RPPN, o casal abriu uma pousada, que contribui para ampliar o ecossistema do turismo sustentável regional ao passo que valoriza a cultura local, trabalhando em parceria com a comunidade. Essa é uma das muitas histórias de pessoas, organizações ou empresas de diferentes setores que abraçaram essa causa. 

Muitas RPPNs surgem de uma forte conexão familiar. Alguns proprietários começam a preservar uma área porque querem manter a vegetação e a fauna intacta nas terras que seus pais ou avós cuidaram com tanto carinho. Essa ligação emocional, transmitida através das gerações, tem sido uma poderosa motivação para a expansão das RPPNs no Brasil e, principalmente, na Mata Atlântica – e acaba se transferindo para a natureza em si. É ela, afinal de contas, o nosso ancestral mais antigo.

O que nasce do afeto e da memória, além de repercutir positivamente na saúde do planeta, também abre as portas para oportunidades econômicas. Ou seja, combina benefícios significativos tanto para o meio ambiente e a sociedade, quanto para os proprietários em si. As RPPNs agregam ainda valor às propriedades: podem promover, como no caso de Rui e Faura, o ecoturismo e, paralelamente, atividades econômicas sustentáveis ou a produção de vegetais orgânicos. Na Mata Atlântica, são mais de 200 reservas corporativas de diferentes setores, como agropecuário, energia, florestal, papel e celulose, mineração, imobiliário, turismo, hoteleiro, transporte, cosméticos, bem como de organizações da sociedade civil.

Para criar uma RPPN não existe restrição do tamanho das áreas. Algumas são menores de um hectare – tamanho médio de um campo de futebol. Boa parte dessas "pequenas" RPPNs ficam em Curitiba (PR), município com maior número de reservas criadas no país (64), estimuladas por uma legislação municipal e uma política pública que permite a comercialização do potencial construtivo de áreas verdes certificadas como RPPN e pela APAVE, a Associação dos Protetores de Áreas Verdes do Paraná, que atuou fortemente na capital e região metropolitana.

Proprietários de RPPNs podem ainda se beneficiar de incentivos como ICMS-Ecológico em alguns municípios, de isenção de impostos como o ITR e do programa de Pagamento por Serviços Ambientais (PSA), a exemplo dos estados de São Paulo, Rio Grande do Sul e Alagoas – algo que poderia ser estendido aos demais com políticas mais robustas.

Há também uma nova legislação em tramitação no Congresso Nacional que promete fortalecer ainda mais as RPPNs (PL 784/2019), oferecendo, além do ITR e PSA, outros incentivos adicionais para os proprietários como prioridade na obtenção de empréstimos junto aos bancos oficiais de crédito para melhoria e conservação, possibilidade de acesso facilitado a financiamentos e outras formas de apoio financeiro e técnico. Essas e outras medidas vêm sendo aprofundadas também no âmbito dos créditos de carbono e de biodiversidade, biocréditos, títulos de cota de reserva ambiental, certificação e outros mecanismos que são muito importantes para expandir a criação e consolidação de RPPNs e garantir a preservação da biodiversidade no país.

Não podemos esquecer a relevância das RPPNs na promoção da pesquisa, da educação ambiental e da construção de uma população cada vez mais consciente e engajada. Muitas reservas recebem visitas de escolas e realizam programas educativos que sensibilizam pessoas de todas as idades sobre a importância da conservação dos nossos biomas.

Com o apoio adequado e o entendimento correto de todas as potencialidades das RPPNs, cada vez mais proprietários podem se juntar a essa causa, garantindo um futuro mais saudável e longevo a todos nós. Assim como precisamos da natureza, a natureza precisa, e muito, das pessoas.


*Marcia Hirota é presidente do Conselho da Fundação SOS Mata Atlântica, que desde 2002 oferece suporte técnico e financeiro para a criação e manutenção de RPPNs

Foto: Plantio de mudas nativas na RPPN Fruta do Lobo.

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