Tudo começou da década de 1990, com a aparição de um jacaré na escura e contaminada água do rio Tietê, na capital paulista.
O Teimoso, nome dado ao jacaré-de-papo-amarelo que virou símbolo na luta pela despoluição do principal rio do estado de São Paulo, apareceu em diversos pontos do rio Tietê e do rio Pinheiros, onde foi resgatado.
O trabalho das equipes de resgate, principalmente do Corpo de Bombeiros, e a persistência de sobreviver em águas tão degradadas, rendeu ao jacaré o apelido de Teimoso. Foram mais de dois meses tentando retirar o réptil do trecho urbano do rio e até hoje é um mistério como ele foi parar lá na capital, mas o fato é que Teimoso foi o grande agente mobilizador da sociedade em prol da despoluição do maior rio paulista.
O jacaré despertou nas pessoas que conviveram com o rio, na primeira metade do século XX, o desejo de retornar a ter o Tietê vivo. Ao mesmo tempo, trouxe para aqueles que não tiveram essa oportunidade, o desejo de que o rio fosse reintegrado à vida urbana da principal cidade do país. Tornou-se fator aglutinador da sociedade em prol da despoluição de nossos rios em um tempo em que o tema Água Limpa ainda não fazia parte das preocupações da maioria das pessoas, principalmente porque havia a falsa ideia de abundância de água e de que ela não faltaria, ainda que a degradação e poluição dos principais rios do país já fossem visíveis e sentidas.
Também virou pauta na imprensa, quando o grupo jornalístico O Estado de S. Paulo, que havia recém-inaugurado uma estação de rádio, a Rádio Eldorado AM, que na época tinha parceria com a BBC de Londres. As equipes das duas emissoras tiveram a ideia de fazer um programa comparando os rios Tietê e Tâmisa, com um repórter em Londres e outro em São Paulo, trocando considerações ao vivo sobre a situação dos dois rios. A sugestão de comparação com o Tâmisa se deu porque esse rio também sofreu enormes desafios quanto à sua condição, chegando a ser conhecido como o ‘grande fedor de Londres’, e teve seu curso despoluído durante um trabalho que durou mais de 70 anos, ao longo do século XX.
Somada a aparição do jacaré com o programa de rádio, concomitantemente ocorreu uma iniciativa do SESC São Paulo, que realizou um projeto chamado Parceiros do Tietê e mobilizou urbanistas, publicitários, ambientalistas, dentre outros, para pensarem soluções para o rio. Também conhecidos artistas se mobilizaram para cantar em prol do principal rio do estado de São Paulo, como Elba Ramalho, Zizi Possi, Sá e Guarabira, Itamar Assumpção e Arrigo Barnabé, entre outros. Estava formado o ambiente para uma grande mobilização em prol da despoluição do Tietê.
A equipe da Rádio Eldorado, depois de receber uma enxurrada de cartas e telefonemas de pessoas querendo a despoluição do Tietê, procurou a também recém-criada Fundação SOS Mata Atlântica, que tinha apenas cinco anos de existência em 1991 e juntas criaram o Núcleo União Pró-Tietê, uma iniciativa que visava mobilizar a sociedade em prol dos Rios da Mata Atlântica. Inicialmente, foi feito um concurso para a criação da logomarca da campanha e o logo escolhido foi o do artista plástico Gustavo Rosa. A ideia do Núcleo União Pró-Tietê era coletar um milhão de assinaturas em prol da despoluição do Tietê, numa época em que a assinatura era física e ainda não existiam as petições eletrônicas por meio da internet, portanto um enorme desafio. No entanto, isso foi superado em 20%, coletando-se, então, 1,2 milhão de assinaturas.
O momento era muito propício para uma mobilização com causa socioambiental, como é o caso da despoluição de um rio, já que o investimento em saneamento básico reflete na melhoria da vida das pessoas, na saúde da população e na economia local. Era começo da década de 1990 e o Brasil, mais precisamente a cidade do Rio de Janeiro, iria sediar a maior conferência sobre o meio ambiente até então realizada, a ECO-92 ou RIO-92. Nesse evento, foi entregue ao então governador de São Paulo, Luiz Antônio Fleury Filho, o abaixo-assinado exigindo as obras de despoluição do Tietê.
Com essa pressão popular, o governo do estado de São Paulo, através da Sabesp (Companhia de Saneamento Básico de São Paulo), lançou o Projeto de Despoluição do Tietê, trabalho que ocorre até hoje e que já dotou milhões de pessoas com acesso à coleta e tratamento de esgoto.
A CETESB (Companhia Ambiental do Estado de São Paulo) identificou e autuou, num primeiro momento, grandes empresas geradoras de efluentes que poluíam o rio, e foram iniciadas construções de grandes estações de tratamento de esgoto (ETEs). Atualmente, o Projeto Tietê encontra-se em sua quarta etapa, que resultou em um salto no tratamento de esgoto de 15% da população atendida, para 75%, na bacia hidrográfica do Alto Tietê, que corresponde basicamente à Região Metropolitana de São Paulo.
Com o projeto iniciado, foi necessário buscar uma maneira de tornar possível o acompanhamento pela sociedade de uma obra dessa magnitude que, além de não haver ainda a Lei de Acesso à Informação, consistia em obra de grande complexidade, basicamente de tubulações enterradas e, portanto, invisíveis aos olhos dos cidadãos.
Face a essa situação, a equipe da SOS Mata Atlântica da época, considerando que os rios são espelhos da sociedade e nos contam tudo o que acontece numa bacia hidrográfica, concluiu que o próprio rio Tietê é que iria mostrar se as obras estavam acontecendo conforme programadas.
Assim, para o acompanhamento das obras e das etapas do Projeto Tietê, nada melhor do que a observação do rio. Surgiu então, em 1993, a partir da legislação vigente – na época, Resolução CONAMA 20 (Conselho Nacional de Meio Ambiente), hoje atualizada para Resolução CONAMA 357/05 –, o Observando o Tietê, um trabalho de acompanhamento da situação do rio feito pela população.
Para que esse acompanhamento pudesse ser feito por pessoas leigas, a SOS Mata Atlântica reuniu nomes da academia, como Samuel Murgel Branco, Ben-Hur Luttembarck Batalha e Aristides de Almeida Rocha, que criaram a metodologia para se realizar a análise da qualidade da água, em conformidade com a lei, de uma forma simples e bastante eficiente.
Desde então, a metodologia criada para monitorar o Tietê vem mobilizando a sociedade para olhar com mais atenção para os rios da Mata Atlântica. Em 2015, a SOS Mata Atlântica firmou parceria com a empresa Ypê, que possibilitou a expansão do trabalho para os 17 estados brasileiros que têm Mata Atlântica e, então, a metodologia do Observando o Tietê passou a se chamar Observando os Rios.
O Observando os Rios é um trabalho de educação ambiental, de mobilização social e de ciência cidadã, realizada antes mesmo desse termo se popularizar. E, assim como todas as ações da SOS Mata Atlântica, é um instrumento de incidência política, dado que a Água Limpa é uma das causas prioritárias da Fundação. A água está diretamente ligada à conservação da Mata Atlântica, à sustentabilidade dos ecossistemas, à saúde e às atividades econômicas e culturais da população que vive no bioma. Foi assim que a SOS incorporou a água como causa em seus projetos, estatuto e missão. Todos os dados levantados e as informações produzidas passaram a ser sistematizados, armazenados e disponibilizados à sociedade por meio eletrônico, no portal da organização.
Atualmente, o Observando os Rios conta com uma rede de cerca de 2.700 voluntários e voluntárias, reunidas/os em 178 grupos de monitoramento, em 99 municípios, analisando 215 pontos de coleta, em 178 rios, em todos os estados brasileiros que possuem Mata Atlântica.
Toda essa história só foi possível graças a parceiras/os e patrocinadoras/es que acreditaram nessa empreitada ao longo dos anos; às/aos profissionais que dedicaram parte de sua carreira para mobilizar pessoas em prol do rio, e, principalmente, à enorme rede de voluntárias e voluntários do Observando os Rios. Foram mais de 20 mil pessoas que puderam participar e vivenciar a experiência de observar os rios de seus territórios.