Por Erika Guimarães, Luiz Paulo Pinto e Diego Igawa Martinez*
O papel essencial das Unidades de Conservação (UCs) municipais para a proteção da biodiversidade vem sendo desvendado, mas é essencial também entender a contribuição dessa rede de proteção local para o desenvolvimento sustentável e o bem-estar da sua população. Somente na Mata Atlântica são mais de 900 UCs municipais distribuídas por 428 cidades, como evidenciou levantamento conduzido pela Fundação SOS Mata Atlântica. Esse conjunto de municípios abrange uma população de cerca de 72 milhões de pessoas, nas zonas rural e urbana, ou seja, um contingente grande de habitantes demandando recursos e serviços de qualidade.
Mesmo diante de enormes desafios políticos, técnicos e financeiros, à medida em que se conhece essa rede de proteção local, nota-se que as UCs municipais individualmente, ou através de mosaicos e como parte da infraestrutura verde dos municípios, podem proporcionar oportunidades e múltiplos serviços à sociedade como o abastecimento de água; a conexão com a natureza; o bem-estar e a melhoria da saúde física e mental das pessoas; a restauração ambiental e revitalização dos espaços urbanos; e o enfrentamento das mudanças do clima.
Com mais da metade da população mundial residindo nos centros urbanos, a relação entre cidadão, urbanização e natureza tem crescido em importância, e vem sendo estudada e incorporada no planejamento territorial e ambiental. O Brasil e especialmente muitas regiões da Mata Atlântica possuem altas taxas de urbanização. Isso é particularmente interessante, pois a maioria das UCs municipais do bioma está localizada em ambientes urbanos e periurbanos, sendo preciso, portanto, um novo olhar sobre essas áreas. As UCs municipais representam uma excelente oportunidade de contemplação, lazer e recreação em contato com a natureza, além de serem palco para atividades de educação ambiental e para aproximar sociedade e natureza.
A contribuição das UCs municipais por meio da visitação também pode ser observada na proteção de ambientes costeiros e marinhos, como praias, matas de restinga e até mesmo recifes coralinos. A maioria dos exemplos são encontradas em áreas de fácil acesso e próximas aos centros urbanos, mas ainda assim oferecem uma paisagem mais conservada e os benefícios do contato com a natureza.
O acesso a infraestrutura verde do território, ou seja, UCs e outras áreas verdes, vem sendo relacionado ao aumento da percepção da qualidade de vida e da saúde física e mental das pessoas. Nas últimas décadas, vários estudos foram realizados em diferentes países e apontam, com evidências científicas, que a interação com a paisagem natural está intimamente relacionada ao bem-estar humano e a melhora de indicadores de saúde da população. O contato com a natureza pode provocar, por exemplo, a diminuição do estresse, menor incidência de doenças respiratórias e do coração, melhoria do déficit de atenção em crianças e maior coesão social.
A conexão promissora entre a saúde humana e áreas verdes estimularam a Parks Victoria, uma agência de administração de parques do governo do estado de Victoria, no sul da Austrália, a criar em 1999 a iniciativa “Parques Saudáveis, Pessoas Saudáveis”. O exemplo australiano se espalhou para vários países com novas versões, mas utilizando basicamente o mesmo conceito. A estratégia vem chamando a atenção dos pesquisadores, governantes e dos ambientalistas, e no VI Congresso Mundial de Parques, em Sidney, Austrália, realizado em 2014, foi um dos oito temas discutidos por centenas de especialistas de todo o mundo.
Os ambientes naturais e as UCs são também essenciais ao protegerem áreas-chave de ecossistemas aquáticos e repositórios de água. Uma evidência disso é que cerca de um terço das maiores cidades do mundo obtém parte de sua água potável diretamente das UCs. A crise hídrica acentuada nos últimos anos no Brasil, cenário que cada vez mais vamos ter de enfrentar, é um exemplo claro de como as UCs municipais serão importantes para o desenvolvimento municipal. A proteção de recursos hídricos se apresenta como um dos principais motivadores para criação de UCs municipais na Mata Atlântica. São vários os exemplos de unidades criadas para esse fim, além da formação de consórcios intermunicipais – como Consórcio Quiriri, em Santa Catarina; Coripa, Comafen e Cibax, no Paraná –, que têm como objetivo a criação e manejo de áreas para garantir a geração e o abastecimento de água a toda população e para as atividades econômicas.
Ainda sobre o serviço de provisão de recursos naturais, existem exemplos de UCs municipais criadas em áreas marinhas que contribuem para a sustentabilidade de recursos pesqueiros. A maioria das UCs de proteção integral protege áreas de abrigo e reprodução de espécies marinhas de interesse comercial e promove a exportação de biomassa para áreas adjacentes, efeito conhecido como
spillover, que poderia ser potencializado com o adequado planejamento de redes de áreas marinhas protegidas, onde UCs municipais poderiam ter um papel relevante frente à insuficiência de áreas protegidas estaduais e federais no território marinho brasileiro.
Além da proteção de valores associados à paisagem e a recursos de uso direto, também é importante considerar o papel das UCs municipais na mitigação e adaptação às mudanças climáticas. O efeito de redução das ilhas de calor em grandes metrópoles, por exemplo, já foi demonstrado em vários casos tanto com formações de florestas interiores quanto vegetação costeira, como os manguezais. Várias UCs municipais que constam do estudo foram criadas para proteção do ecossistema do manguezal, que além de ser fundamental para diversas espécies em pelo menos uma parte de seus ciclos de vida, desempenha também um papel importante na proteção da linha de costa, manutenção do balanço sedimentar e sequestro de carbono.
Cabe destacar ainda outro valor particular relacionado às UCs municipais: a produção de conhecimento técnico-científico. Essas unidades estão cada vez mais inseridas na agenda de pesquisa das universidades e propiciam um campo importante para a investigação científica, formação de pessoal e desenvolvimento de teses e dissertações. As UCs próximas aos centros urbanos, sobretudo, são atrativas para os pesquisadores, pois facilitam as operações, com diminuição de custos e de tempo de deslocamentos. Além disso, essas áreas estão inseridas em um contexto de ambientes modificados ou sob forte influência da ação humana, o que abre um enorme campo de pesquisas sobre a interface social, econômica e ambiental.
Os impactos sobre os ecossistemas naturais podem ter efeitos imprevistos sobre a saúde e o bem-estar das pessoas. Entender como esses ecossistemas geram serviços ambientais, quem se beneficia com eles e como contribuem para a saúde humana, e como podem proporcionar maior resiliência frente às mudanças do clima, é fundamental para a promoção de políticas públicas que enfrentarão o desafio de aliar conservação, bem-estar humano e desenvolvimento. E a rede de UCs espalhadas pelos municípios da Mata Atlântica demonstram ser aliadas importantes para esse desafio.
*Erika Guimarães é gerente de Áreas Protegidas da Fundação SOS Mata Atlântica; Luiz Paulo Pinto é biólogo e consultor da organização; Diego Igawa Martinez é biólogo da área de Mar da Fundação. Este conteúdo é parte do estudo “Unidades de Conservação Municipais da Mata Atlântica”, publicado pela Fundação em julho deste ano – conheça o relatório completo.
Crédito da imagem: Gustavo Girard