Entre o rio que foi, o rio que é e o rio que queremos

28 de October de 2025

Afra Balazina e Gustavo Veronesi para o Um Só Planeta

Os rios sempre tiveram papel fundamental na vida urbana. Em São Paulo, não foi diferente. Antes de se tornar cicatriz na cidade, o Tietê foi caminho, alimento e espaço de sociabilidade. Suas águas, assim como as do Tamanduateí e do Anhangabaú, moldaram o modo de vida dos primeiros habitantes da região – indígenas e, depois, colonizadores – que dependiam dos peixes e do acesso ao interior do continente.

Nas várzeas do rio também nasceu o futebol paulistano. Ali, onde o relevo da cidade oferecia raros terrenos planos, multiplicaram-se os campos improvisados que deram origem aos grandes clubes e à tradição do futebol de várzea. O Tietê e seus afluentes foram também palco de competições de natação, como a famosa Travessia de São Paulo, realizada até 1949, quando a poluição já comprometia a saúde dos nadadores.

A industrialização e os projetos urbanos do início do século 20 moldaram São Paulo para os automóveis e para o asfalto, relegando os rios a um papel secundário. As várzeas, ocupadas por populações pobres e negras, passaram a ser vistas como áreas “impróprias” e carregadas de estigma. A própria palavra “varzeano” ganhou conotação pejorativa, como se a degradação estivesse nas pessoas, e não na cidade que escolheu afastar seus rios da vida cotidiana.

Poluído, o Tietê deixou de ser espaço de encontro e passou a ser evitado. Essa transformação mudou a paisagem e afetou também a memória coletiva da cidade.

Hoje, para que crianças e jovens conheçam a face lúdica do rio, é preciso recorrer a álbuns de família: fotos amareladas de remadores e festas às margens. Para quem nasceu nas últimas décadas e só conhece aquele lixão flutuante, chega a parecer surreal. Será que algum dia poderemos reencontrar o velho Tietê?

Muito se fala em despoluição, mas a triste verdade é que, apesar dos investimentos e promessas, o cenário é de estagnação. O relatório Observando o Tietê 2025, da SOS Mata Atlântica, mostra que a mancha de poluição recuou de 207 para 174 quilômetros – uma redução de 16% em relação ao ano anterior. Por outro lado, no mesmo período, os trechos de água em boa qualidade encolheram de 4,6% para apenas 3% do rio. Em números, restam 34 quilômetros limpos em mais de mil de extensão. Na prática, o quadro geral permanece o mesmo há anos. Sem tratamento universal de esgoto e sem enfrentar a poluição difusa que escorre das cidades, qualquer melhoria se desfaz antes de se consolidar.

É no contraste entre memória e realidade que a força do simbólico aparece. Quando dezenas de pessoas voltam a remar no rio – como aconteceu recentemente em São Paulo, na celebração do Dia do Tietê, em 22 de setembro – não é por nostalgia ou pelo inusitado.

É um gesto de resistência. Afinal, se decisões humanas levaram o rio a esse ponto, outras decisões podem abrir caminho para sua recuperação.

Paris liberou o Sena para banho em 2025, depois de mais de três décadas de investimentos contínuos e de mobilização cidadã. O paralelo não serve para idealizar a capital francesa, mas para mostrar que rios degradados podem ser reconquistados quando há persistência, recursos e envolvimento da população. Se foi possível lá, por que não no Tietê, que atravessa o coração da maior cidade do Brasil?

O futuro do Tietê não será definido apenas por obras de engenharia, embora elas sejam indispensáveis. Ele também depende de como a cidade entende sua própria qualidade de vida: não só no concreto que avança, mas na chance de caminhar às margens de um rio vivo, de praticar esporte, de respirar natureza dentro da metrópole. Reaprender a olhar o Tietê dessa forma é o primeiro passo para transformá-lo.

Entre o rio que foi, o rio que é e o rio que queremos, está a decisão de devolver vida ao curso d’água que cruza o estado de São Paulo de ponta a ponta. Isso exige política pública, saneamento universal, governança transparente e também algo menos mensurável: a capacidade de reimaginar o Tietê como espaço de convivência. Enquanto não fizermos esse movimento, ele seguirá reduzido a uma vala. Quando o fizermos, poderá voltar a ser chamado, de fato, de nosso rio.

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