Por Marcia Hirota e Malu Ribeiro*
“A natureza não faz milagres; faz revelações”, já dizia Carlos Drummond de Andrade na obra “O Avesso das Coisas”. A população brasileira que tem vivenciado secas ou enchentes cada vez mais severas, em diferentes regiões do país, sabe bem disso. Resultado do agravamento de impactos do clima e uma das consequências diretas de se desrespeitar ou flexibilizar a legislação ambiental para defender interesses setoriais momentâneos. Decisões erradas que se refletem na água.
Nesta semana, os ministros do Supremo Tribunal Federal (STF) têm uma oportunidade única de corrigir esse curso. Retomam o julgamento de quatro ações diretas de inconstitucionalidade (ADIs) sobre o chamado novo Código Florestal (Lei 12.651/2012), enquanto a sociedade, esperançosa, confia à Justiça a missão de fazer prevalecer o interesse coletivo e o preceito constitucional de proteção das florestas nativas e da água.
Na visão das mulheres das comunidades ribeirinhas que vivem nas bacias e regiões hidrográficas da Mata Atlântica, o “novo” Código Florestal afeta diretamente a água. Esse bioma, que abrange 17 estados brasileiros e 9 bacias hidrográficas, é o mais impactado com a redução das faixas de proteção das Áreas de Preservação Permanente (APPs) e de Reserva Legal.
Em apenas três artigos, a nova Lei reduziu 10,1 milhões de hectares em Áreas de Proteção Permanente (APPs) e Reserva Legal que deveriam ter sido restaurados anteriormente na Mata Atlântica. Isso equivale a 84% da contribuição anunciada (NDC) pelo Brasil no Acordo de Paris, no qual o país se comprometeu com a recuperação de 12 milhões de hectares, incluídos todos os biomas.
Em 2015, o ministro do Supremo Tribunal Federal Luiz Fux, relator da matéria, reconheceu a relação direta entre a escassez da água e o desmatamento. Assim, notificou governadores dos quatro estados do Sudeste para que definissem planos e metas de restauração das áreas de APPs com parâmetros mais rigorosos que os definidos no “novo” Código Florestal.
Acompanhamos atentamente, em novembro passado, a leitura do voto do ministro relator, com as teses e argumentos legais e técnicos levados ao Plenário da Suprema Corte na primeira audiência de julgamento realizada no STF. Infelizmente, não vimos manifestada atenção para a ameaça à água decorrente da diminuição dos instrumentos de proteção das florestas naturais, matas ciliares, nascentes e APPs.
Regularizar usos irregulares do solo em APPs de fundos de vale, topos de morro e margens de rios, chamando-os de áreas consolidadas, é condenar pessoas a permanecerem em locais de risco e aos problemas de saúde pública decorrentes da falta de saneamento básico e ambiental por conta da instabilidade dessas áreas.
As mulheres brasileiras representam a parcela da sociedade mais afetada com a má gestão da água e o desmatamento. A decisão dos ministros do STF deve levar em conta o Direito Humano de acesso à água em qualidade e quantidade, assim como atentar ao Direito Ecossistêmico de proteção da floresta para que o Brasil possa contar com um Código Florestal ético e equilibrado, que compatibilize o meio ambiente com a produção limpa e sustentável de alimentos.
O Cadastro Ambiental Rural (CAR) e o Programa de Regularização Ambiental (PRA), introduzidos no novo Código Florestal, de fato são instrumentos positivos, que devem ser mantidos como ferramenta de gestão para estimular e apoiar a regularização ambiental. Contudo, não podemos aceitar que a lei, por conter instrumentos administrativos interessantes, retroaja para atender a pressões setoriais e argumentos econômicos momentâneos, sem embasamento científico.
Esperamos que a Suprema Corte esteja atenta a essas necessidades com o olhar de gênero e de Direito para as nossas florestas e águas, riquezas de um país que é potência ambiental e que carregam o feminino em sua essência, assim como a Justiça.
*Marcia Hirota é diretora executiva da Fundação SOS Mata Atlântica. Malu Ribeiro é especialista em Água da Fundação. Saiba como apoiar as ações da SOS Mata Atlântica em www.sosma.org.br/apoie.