Entrevista: Julieta Santamaria, primeira pessoa a percorrer os 4 mil km do Caminho da Mata Atlântica

03 de July de 2025

Por Afra Balazina

Fotos Ana Momm


A argentina Julieta Santamaría, de 26 anos, entrou para a história como a primeira pessoa a percorrer integralmente os cerca de 4 mil quilômetros do Caminho da Mata Atlântica — uma trilha de longo percurso que conecta áreas protegidas ao longo da Serra do Mar e parte da Serra Geral, atravessando os estados do Rio de Janeiro, São Paulo, Paraná, Santa Catarina e Rio Grande do Sul. Ao longo de vários meses, ela enfrentou terrenos desafiadores, mudanças climáticas, travessias remotas e, ao mesmo tempo, teve a oportunidade de vivenciar de perto a beleza e a biodiversidade de um dos biomas mais ricos e ameaçados do planeta.


Nesta entrevista à Fundação SOS Mata Atlântica, Julieta compartilha as alegrias, os aprendizados, os desafios e os momentos mais marcantes dessa jornada extraordinária pela Mata Atlântica.



O que te motivou a percorrer todo o Caminho da Mata Atlântica?

A motivação, primeiramente, foi o desafio de enfrentar o desconhecido. Nunca tinha acampado sozinha, por exemplo. Também não tinha relação com o montanhismo. Porém, quando morava na Argentina, sempre tive o desejo de morar no Sul, perto da cordilheira, por isso sinto que é algo que sempre esteve em mim. Com o passar do tempo e com alguns quilômetros nas costas, foram surgindo motivos para seguir em frente. Descobri que minha caminhada podia inspirar outras pessoas a se conectar com a natureza, ou até mesmo perseguir seus sonhos. Muitas vezes achamos que precisamos ter tudo para poder alcançar nossa meta, mas o que é para nós encontra a gente. E, assim, foram se somando motivos e convidando o pessoal a caminhar junto comigo, tentando também promover a preservação da natureza e a prática de mínimo impacto.


Como foi o momento em que você decidiu realmente começar a trilha?

Descobri o Caminho da Mata Atlântica em novembro de 2023, quando morava em Ilhabela. Meu amigo, Marcos, apresentou o projeto para mim. Foi em questão de três dias que mudei meus planos e comecei a planejar a caminhada. A vontade de percorrer esse caminho foi uma sensação que senti no corpo inteiro, tudo em mim desejava ir, então fui.


Qual foi o maior desafio físico e emocional durante o percurso? Teve algum momento em que pensou em desistir? Onde e qual a razão?

O maior desafio é mental. Passar tanto tempo sozinha — às vezes cercada de natureza, às vezes em estradas que parecem não ter fim — longe das pessoas e das redes sociais, fez com que minha vida passasse como um filme na minha cabeça. Muitas vezes coisas não resolvidas voltam com força, mas é uma oportunidade para resolver, para nos conectar com nós mesmos, e para perdoar também.

Com o tempo, consegui chegar num estado de presença plena, em que os pensamentos não atrapalhavam mais e só havia espaço para me conectar com a natureza de uma forma mais intensa, com atenção nos detalhes e sons. Na atualidade, é comum ver muitas pessoas com ansiedade, se preocupando com o futuro ou com o passado. Eu também era assim, mas nesse tempo descobri que o único que a gente tem é o presente, e não conseguimos dar o devido valor.



Como foi chegar ao fim da jornada — o que passou pela sua cabeça?

Aproveitei os últimos dias sozinha para processar tudo o que aconteceu e agradecer por ter conseguido atravessar os mais de 4 mil quilômetros em segurança e sem me machucar. Senti uma sensação de orgulho tão forte, de fazer chorar mesmo. Os últimos dois dias no Parque Nacional da Serra Geral e no Parque Nacional dos Aparados da Serra caminhei em companhia de amigos do Rio de Janeiro, São Paulo, Paraná, Santa Catarina e Rio Grande do Sul, o que me encheu o coração, e foi uma prova do que foi o projeto: uma união de pessoas desconhecidas em prol de fazer o Caminho da Mata Atlântica acontecer. E também tive uma surpresa: minha mãe e minha irmãzinha vieram de Argentina e eu não sabia, foi minha irmã que me entregou a placa de conclusão do Caminho da Mata Atlântica. Do princípio ao fim só fui eu com o corpo, mas todos juntos finalizamos essa missão. Fui muito ajudada tanto por pessoas do projeto como por pessoas que me conheceram passando pela sua cidade — fiz amizades por todo lugar!


O que mais te surpreendeu na Mata Atlântica ao longo do caminho? Que sons, cheiros ou paisagens ficaram gravados na sua memória? Teve medo de alguns animais?

Passei por lugares desmatados e por lugares reflorestados e é incrível a mudança na temperatura, o aumento de nascentes, o quão fácil é encontrar animais em lugares mais preservados. Comecei a me interessar pelos passarinhos e tentar reconhecê-los na mata, tanto pelo som como pela morfologia. Hoje em dia conheço alguns, mas é muito complexo. Fico admirada com os observadores de aves que conheci. As paisagens que mais ficaram na minha cabeça foram nas montanhas — é incrível ver lá de cima tanto a cidade como o céu estrelado ou o tapete de nuvens. Também teve muitos nascer do sol e pôr do sol, nascer da lua em lua cheia. É indescritível presenciar esses momentos! Tive medo quando encontrei com um bando de queixadas e um bando de javalis. As queixadas estavam a uns 30 metros de mim, os javalis a 10. Mas tudo deu certo, e eles foram embora. Eles têm mais medo de nós do que nós deles, e com razão…


Como a trilha mudou sua relação com o meio ambiente?

Mudou completamente. Não tinha noção de quanto ia mudar nesse sentido. Hoje em dia as pessoas me veem como um exemplo, e fico feliz de ter chegado nesse lugar, porque desde o começo quis aproximar os outros do que estava vivendo — e deu certo. É importante conhecer a natureza porque ninguém cuida do que não conhece, e sou feliz com minhas mudanças. Hoje me preocupo em usar produtos que são livres de crueldade animal e veganos. Não como mais nenhum tipo de carne. Tento separar o lixo sempre. Fiz a travessia com o “shit tube” (pote coletor de dejetos) para não deixar nada na natureza. E muitas vezes juntei lixo na trilha ou nas praias pelas quais passei.

Uma vez ouvi dizer que não fazia sentido minha mudança porque “as pessoas não estão nem aí”, mas seguir os outros é o caminho fácil, né? Imagina se todo mundo pensasse o contrário e todo mundo colaborasse para juntar o lixo mesmo não sendo nosso, se todo mundo fosse mais consciente no consumo. Nossos atos falam de nós, não dos outros. Por isso, talvez eu não mude o mundo, mas vou colaborar para que ele seja melhor.


Você lembra de um momento mágico ou simbólico em meio à floresta?

Houve momentos em que errei o caminho e do nada meu corpo ficava arrepiado. Eu senti isso como uma forma de a natureza se comunicar comigo. E teve muitos momentos em que meu corpo pedia simplesmente para parar, fechar os olhos e sentir o vento, ouvir uma cachoeira, os passarinhos. Coisas simples que me fazem sentir em paz.


Como você se preparou fisicamente e logisticamente para essa travessia? Já tinha feito outras trilhas longas antes?

Não tinha experiência em trilhas de longo curso, mas sempre pratiquei esportes: natação, handebol, musculação, crossfit, funcional, e minha locomoção era em bicicleta. Acredito muito que isso ajudou a ter resistência para longas caminhadas. Entre novembro e fevereiro fiz muita pedalada em Ilhabela, também nadava e corria. E, nas minhas folgas, pegava a mochila, a carregava e saía para andar.

Tentei fazer a logística sozinha, mas não deu certo e mudei o jeito de planejar. Como é uma trilha nova, e havia várias questões a resolver, o melhor jeito foi planejar de cinco dias a uma semana, falando com o pessoal local e a coordenação do Caminho Mata Atlântica (CMA). Também foi preciso ser adaptável, já que nesses caminhos quem manda é a natureza.



Quantos dias durou o percurso e como você organizou os pernoites? Teve apoio durante o caminho? Dormiu em pousadas, casas, acampou?

Foram 195 dias de caminhada, o que dá em torno de seis meses e meio, mas no total foram quinze meses. Tive muito apoio ao longo dos 4.000 km de voluntários e parceiros do CMA, de desconhecidos, de instituições como a Fundação Florestal e o ICMBio, de associações como a Associação de Serra Geral Montanhismo (ASGEM), federações como a Federação de Escalada e Montanhismo no Estado de Santa Catarina (FEMESC), lojas como a Mundo Aventura do Paraná, a Spot Brasil e grupos de trilheiros do Brasil que sempre, mediante redes sociais, me perguntavam se estava tudo bem ou se precisava de alguma coisa. Dormi em pousadas, campings, camping selvagem no mato e nas montanhas, em casas de desconhecidos, igrejas, bares com quadras de futebol e mais.


Que itens foram indispensáveis na sua mochila?

Barraca, saco de dormir, isolante, lanterna, fogareiro, panelas, gás, powerbank (carregador portátil), Spot (rastreador satelital que serve para as pessoas saberem a minha localização mesmo em locais sem sinal, mandar mensagens e ativar um botão de SOS caso aconteça alguma coisa), além de roupa e itens de higiene pessoal. Não carregava muitas coisas de conforto, apenas o essencial.


Saiba mais sobre o Caminho Mata Atlântica:

A trilha tem seu limite norte no Parque Estadual do Desengano (RJ) e se estende até os cânions do Parque Nacional dos Aparados da Serra (RS). Ela foi inspirada na Appalachian Trail (trilha de 3.500 km que passa por 14 estados americanos e recebe mais de 3 milhões de visitantes anualmente). O caminho cruza mais de 130 áreas protegidas, diversas comunidades tradicionais e terras indígenas e une trilhas históricas, como o Caminho do Itupava (PR), os Caminhos do Mar (SP), o Caminho de Mambucaba (SP/RJ) e as travessia Petrópolis-Teresópolis e Lumiar-Sana (RJ). Serpenteando por montanhas e praias, a trilha passa também pelas paisagens da Ilha de Santa Catarina (SC), Ilha do Mel (PR), Ilhabela (SP) e Ilha Grande (RJ). https://caminhodamataatlantica.org.br/

 

Alguma dica para quem sonha em fazer esse caminho?

Eu saí sem muito preparo, mas realmente tenho muita resistência. Não é um caminho fácil de fazer. No total, acumulei uns 120 mil de altimetria. Haja perna! Mas minha dica é dar prioridade aos equipamentos, porque equipamentos bons vão evitar muitos perrengues. E aproveitar cada lugar e pessoa por quem passar.


O que você gostaria que as pessoas soubessem sobre o Caminho da Mata Atlântica?

O Caminho da Mata Atlântica, mais que uma mega trilha, é um projeto de restauração da Mata Atlântica. É um projeto construído “a muitas mãos”, por voluntários, em que existe uma governança pensada de forma participativa que foi idealizada para facilitar a gestão desse grande território. Isso é feito da seguinte maneira: núcleo local que dá apoio aos parceiros e voluntários, coordenação estadual que dá apoio aos núcleos locais, e coordenação geral que dá apoio à coordenação estadual. Ele só se desenvolve com ajuda e articulação de voluntários que acreditam no projeto.



Como a visibilidade dessa trilha pode ajudar na conservação da Mata Atlântica? Você chegou a ver crimes ambientais pelo caminho, desmatamento, queimadas?

Ter pessoas percorrendo esse caminho abre as portas para mais pessoas entenderem a importância de preservar. Como disse antes, ninguém cuida do que não conhece, então esse contato, essa conexão é essencial. Às vezes, se coincidir, pode acontecer de chegar a um local onde está acontecendo um mutirão de plantio de espécies nativas, como aconteceu comigo quando plantamos palmito-juçara. Também o projeto promove um turismo responsável. Ao longo do caminho tem muitos parceiros que trabalham arduamente reflorestando ou preservando suas áreas.

Cheguei a ver áreas queimadas — um foco de incêndio se iniciou ao meu lado na trilha e entrei em contato com o pessoal do parque, que à tarde avisou que foi controlado. Muitas áreas desmatadas onde hoje tem gado, e também áreas desmatadas recentemente, assim como também barracas de caçador e palmiteiros. Cheguei a encontrar um caçador na trilha mesmo, com suas bolsas de caça no cavalo. Passei por locais onde a cultura da caça ainda é forte. Por locais onde houve deslizamentos e mortes. Vi muita coisa ao longo dessa caminhada.


Você enxerga o Caminho como uma ferramenta de educação ambiental ou de mobilização?

Sim, quase todo mundo que está engajado com o CMA transmite a mesma mensagem de cuidado. Então você vai aprendendo com eles à medida que vai conhecendo. Além disso, fazem reuniões nos núcleos ou oferecem palestras fortalecendo a consciência ambiental e mobilizando quem está por perto.


Como foi, sendo argentina, se conectar tão profundamente com um bioma majoritariamente brasileiro e que ocorre também na Argentina e Paraguai? Você nota diferenças no bioma na parte argentina e brasileira?

Infelizmente não conheço a Mata Atlântica da Argentina, chamada de Selva Misionera. Eu adoro a Mata Atlântica, sou uma apaixonada, mas na medida em que fui aprendendo, senti vontade de conhecer mais meu país. Por exemplo, tem muitos animais que sei os nomes em português e não em espanhol — é muito doido isso.


Qual mensagem você espera transmitir com essa conquista?

Sinto que a mensagem de perseverança, de ter foco, fé e acreditar em nós mesmos, assim como a importância de preservar e se conectar com a natureza, foi transmitida. Mas gostaria de fazer ainda mais. É uma sensação que sinto desde que terminei, uma pergunta que fica aí: o que posso fazer com isso? De que forma trabalhar para continuar transmitindo essa mensagem?



Pretende escrever um livro ou dar palestras sobre essa experiência? Como quer contar essa história para mais pessoas e inspirá-las?

Sim, pretendo escrever um livro. O processo já está em andamento e tenho muita vontade de dar palestras em eventos maiores. Até agora, tive a oportunidade de falar em escolas e clubes de montanhismo, e tem sido incrível poder compartilhar um pouco da minha história, tudo o que aprendi e vivi. Depois dessas conversas, percebo o quanto minha trajetória inspira outras pessoas, especialmente mulheres. Acho importante ocupar os espaços que nos pertencem no mundo, e sou muito grata por poder mostrar que é possível — especialmente para meninas mais novas — seguir nossos sonhos e fazer o que quisermos.

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