Texto e imagens: Marina Vieira
Enquanto esperávamos a visita pela sede da SOS Mata Atlântica começar, o cacique Márcio Verá Mirim, do povo Guarani Nhandeva, observava uma linha de formigas carregando cortes de folhas até sua colônia. A rota, repetida provavelmente milhares de vezes por dia, fez uma marca evidente no gramado, que fica perto do
viveiro onde a SOS Mata Atlântica produz mudas de mais de 100 espécies de árvores do bioma. Ele comenta que as formigas praticamente acabaram com um projeto de restauração numa terra indígena no Espírito Santo do qual participou.
A área estava cheia de eucaliptos quando a comunidade retornou ao território, relatou. Não sendo uma espécie nativa, eles foram cortados e, no lugar, a comunidade plantou mudas da Mata Atlântica. “Uma parte a gente sabia que seria comida pelas formigas, mas elas acabaram com tudo”, compartilha. Comentamos sobre o estado de desequilíbrio que uma área fica quando está degradada. Sem os eucaliptos, não havia outra fonte de alimentos para as formigas. E sem o ecossistema da floresta, não havia predadores naturais que controlassem essas populações.
O caso exemplifica os inúmeros obstáculos a serem superados numa tentativa de restauração ecológica. Mais tarde, no topo do mirante de onde podem ser vistas as mais de 700 mil árvores plantadas na área já crescidas , Rafael Bitante Fernandes, coordenador da área de
restauração florestal da SOS Mata Atlântica, falava para Jurandir Karai Jikupe, outra liderança Guarani convidada para a visita, que dependendo do lugar uma árvore exótica como o eucalipto pode ser uma aliada temporária da restauração. Ela pode oferecer sombra para espécies mais sensíveis crescerem ou ser uma fonte de recursos para bancar a própria restauração. Por isso, é preciso analisar caso a caso.
Esta troca entre os saberes tradicionais e o conhecimento técnico-científico foi um dos motivos para os
dois líderes visitarem a sede da ONG. “Estamos buscando parceiros para ir além desse trabalho de formiguinha”, disse Márcio sobre os esforços de restauração do seu povo. O outro importante motivo foi uma pesquisa que pela primeira vez olhou para o bioma da Mata Atlântica e sua relação com a regularização de territórios indígenas.
Conservação da mata em terras demarcadas
Lançado nesta quinta na
revista PNAS Nexus, o estudo mostra que, apesar de todas as dificuldades, a cada ano após a demarcação de uma Terra Indígena (TI) na Mata Atlântica, há um aumento de 0,77% na cobertura florestal da área, quando comparada com terras não regularizadas.
“Descobrimos que a demarcação completa é necessária para trazer os benefícios ambientais [da restauração]. Fiquei surpresa, não esperava que houvesse tanta diferença em relação a outros estágios da regularização”, conta a doutora Rayna Benzeev, pesquisadora pós-doutoranda da Universidade da Califórnia em Berkeley, que realizou sua pesquisa enquanto era estudante do doutorado no Departamento de Estudos Ambientais da Universidade de Boulder, no Colorado.
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Rafael Bitante mostra o viveiro de mudas da SOS Mata Atlântica para pesquisadores e lideranças indígenas.
Benzeev e os coautores avaliaram 129 territórios indígenas na Mata Atlântica e encontraram menos desmatamento e maior reflorestamento em terras onde os povos indígenas têm direitos formais de posse, em contraste marcante com os territórios indígenas onde as comunidades carecem de direitos ou apenas estão no processo de obtenção de posse formal.
Na avaliação do diretor executivo da SOS Mata Atlântica, Luís Fernando Guedes Pinto, o estudo reforça a mensagem de que os povos indígenas são “guardiões da floresta” também neste bioma.
Acompanhando a visita ao CEF, ela contou por que resolveu falar sobre o bioma que abriga 70% da população brasileira. “Na perspectiva internacional, tem muitas pessoas falando da Amazônia e praticamente ninguém ouviu falar da Mata Atlântica. E ela é muito importante, por ser um
de biodiversidade, pelos direitos dos povos indígenas daqui, e pela combinação dos direitos humanos, qualidade de vida e do meio ambiente”, defende a pesquisadora.
Além de benefícios socioambientais para toda a sociedade, a restauração pode significar também a retomada e fortalecimento de práticas culturais e espirituais para os povos indígenas. Durante a visita pelo viveiro e pelas áreas restauradas no CEF, Márcio e Jurandir apontaram várias espécies com significado para o povo Guarani.
O cedro, por exemplo, é usado num ritual de batismo de água. “Os mais velhos falam que dentro dela [uma árvore de Cedro] está a casa do sol, por isso a gente usa a água dela para benzer e fortalecer o espírito das pessoas”, ensinou o cacique Márcio. Ele contou também que o Ipê Amarelo é considerado em sua cultura a primeira árvore criada por Deus (Nhanderu).
Jurandir compartilhou que a palmeira Jerivá, que os Guaranis chamam de Pindó, era tão abundante que eles deram a essa terra o nome de Pindorama. Márcio completa: “Por isso a gente tem que conhecer a biodiversidade. É a morada dos nossos deuses”.
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