Entrevista com Clayton Lino: um naturalista no século XXI
07 de June de 2022
Por Mônica C. Ribeiro
Há 50 anos, Clayton Lino entrava em uma caverna pela primeira vez na vida, no Vale do Ribeira, experiência que o levou a direcionar sua atuação para a área ambiental. Foi lá que o físico-arquiteto-antropólogo-espeleólogo viu pela primeira vez a Mata Atlântica, na Serra do Mar. A ocasião foi também seu primeiro contato com a região do Petar (Parque Estadual Turístico do Alto Ribeira), que ele ajudou a implantar e do qual foi o primeiro gestor.
A aventura, em uma caverna extremamente difícil, em que se movimentou por buracos esguios, teto baixo e rios subterrâneos, foi um batismo bem-sucedido, que o levou a ter uma atuação fundamental para a conservação das cavernas brasileiras e da Mata Atlântica.
Lino teve participação ativa na legislação ambiental consolidada na Constituição de 1988, está entre os fundadores da SOS Mata Atlântica e do ISA (Instituto Socioambiental), ajudou a criar a figura da RPPN (Reserva Particular do Patrimônio Natural), foi o propositor da figura dos Mosaicos de Áreas Protegidas e trabalhou para incluí-las no SNUC (Sistema Nacional de Unidades de Conservação). Também ajudou a criar a Secretaria de Meio Ambiente do Estado de São Paulo, onde atua até os dias de hoje. E integra o Conselho da SOS Mata Atlântica.
Permaneceu muitos anos à frente da presidência do Conselho Nacional da Reserva da Biosfera da Mata Atlântica, participou como fotógrafo da primeira expedição brasileira à Antártida e foi presidente da Sociedade Brasileira de Espeleologia por duas vezes.
Recentemente esteve em Brasília, participando da mobilização contra o decreto presidencial 10.935, de janeiro deste ano, que coloca em risco como nunca antes as cavernas brasileiras. Apesar de reconhecer que o movimento ambientalista tem sido forçado a atuar predominantemente na defensiva contra retrocessos e ameaças nos últimos anos, se mantém otimista quanto à reação da sociedade.
“Temos projetos de lei tentando desorganizar o SNUC, a Lei da Mata Atlântica, as áreas protegidas, o Código Florestal, quer dizer, toda a questão ambiental, social e cultural do Brasil está não só sendo ameaçada, mas já aconteceram vários retrocessos importantes. Mas eu sou otimista. Sei que todo mal também passa. A pandemia da covid-19 dificultou muito a mobilização, a gente só podia colocar nas redes sociais, fazer abaixo assinado virtual. É muito diferente quando a sociedade pode se reunir em um espaço, se manifestar, mostrar a concentração de pessoas em torno de uma causa. Tenho visto agora uma reação da sociedade que espero que cresça muito.”
Em entrevista à SOS Mata Atlântica, Lino rememora a criação da Fundação e a atuação dos ambientalistas logo após a redemocratização brasileira, fala sobre a situação das cavernas brasileiras, a importância da criação do Atlas da Mata Atlântica, retrocessos e caminhos do ambientalismo para o futuro do país e sobre a sua atuação, tal como um ‘naturalista dos séculos XIX’, misturando áreas e conhecimentos para atuar pelo bem do planeta.
“Me caracterizo como uma pessoa que não tem esse limite das disciplinas. Porque acho que isso permite ter uma relação melhor com o planeta. Todas essas coisas são muito integradas. No planeta é assim. A gente é que divide.”
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Lembrança de uma das primeiras grandes exposições feitas pela SOS Mata Atlântinca (Foto: Arquivo pessoal de Clayton Lino)
- Você tem formação em física, arquitetura e antropologia, é espeleólogo...como as suas várias formações contribuem para o modo como você vê e se aproxima da natureza?
Essas formações não foram uma coisa planejada. Eu nasci em Franca, interior do estado de São Paulo, e depois vim para a capital com a ideia de ser físico, queria ser físico nuclear. Cursei física até o último ano. Só que nesse processo eu conheci a arquitetura. E à medida que fui descobrindo a arquitetura, vi que tinha muito a ver comigo. Até em parte por ser várias coisas em uma só. Você se forma em arquitetura e pode fazer teatro, fotografia, pode trabalhar com urbanismo, com patrimônio histórico, paisagismo, e assim por diante. Essa riqueza da profissão me chamou muito a atenção. Fiz física até o último ano, mas o último exame eu entreguei em branco, embora soubesse todas as respostas, porque não queria passar, queria a transferência para a arquitetura.
Depois fiz meu mestrado em antropologia. Eu estava bem adiantado na preparação do material e preparando também a dissertação, mas eu já era espeleólogo e conheci, no Congresso de Espeleologia na época, uma pessoa, Lélia Rita, que viria a ser a primeira secretária de meio ambiente do então recém-criado estado do Mato Grosso do Sul. Ela queria desenvolver turismo e meio ambiente. E me chamou para ir até lá e fazer o trabalho de levantamento dos atrativos turísticos e ambientais do novo estado. E aí fui para Bonito, que ninguém conhecia na época, e que virou depois a capital brasileira do ecoturismo. Fui até as cavernas, fiquei com os índios Kadiwéu, com os Terena, enfim, passei quatro meses lá.
E depois apareceu outra coisa. Eu já trabalhava com fotografia e espeleologia, e o Ibama me chamou para ser o fotógrafo da primeira expedição brasileira para a Antártida, que aconteceu no final de 1982 para 83. Era irrecusável. Expliquei para o meu orientador e ele me disse que eu precisava resolver se ia fazer o mestrado ou ia para a Antártida. Aí me caiu a ficha e eu fui para a Antártida. Esse foi o fim do meu mestrado em antropologia. Mas continuo apaixonado pela antropologia, estudando o tempo todo e vivendo ela no meu trabalho, na abordagem sobre essa relação do homem com a natureza, principalmente no caso das comunidades tradicionais.
Todas essas coisas são muito integradas. No Planeta é assim. A gente é que divide. Eu, embora não tenha o diploma da física, eu uso muito e adoro a física. É uma forma de pensar, de enxergar o mundo. A mesma coisa com a arquitetura, com a biologia e com a antropologia.
- Como a espeleologia entrou na sua vida? Em uma entrevista concedida ao Museu da Pessoa você disse que tudo o que faz hoje é porque entrou em uma caverna na Serra do Mar...
Sempre fui muito ligado à natureza, meu pai tinha fazenda e eu o acompanhava até lá todo fim de semana, adorava. Minha mãe sempre teve esse vínculo de encantamento pela natureza. Isso com certeza me influenciou. Sempre tive uma relação com a natureza que foi cordial, de encantamento.
Eu ainda era estudante de física no Mackenzie, mas já frequentava o diretório da arquitetura. Lá eu encontrei dois colegas de Rio Preto, que faziam antes, como eu, teatro amador. A ditadura fechou todas as atividades desse tipo, mas eu os reencontrei em São Paulo, quando me mudei para cá. E um deles, já sabendo que eu gostava de natureza, me contou sobre um grupo na USP que fazia expedições, canoísmo, montanhismo etc., que era o CEU (Centro Excursionista Universitário). Fui até lá com esse colega para acompanhar uma reunião. Ele nunca mais voltou e eu nunca larguei, até hoje sou sócio do CEU. No dia em que cheguei, acontecia uma apresentação de slides de uma turma que tinha ido pela primeira vez até o Vale do Ribeira, exatamente na região do Petar. Voltaram encantados. E, logo depois, na Semana Santa de 1972, eu participei de uma excursão até lá. Foi aí que vi pela primeira vez a Mata Atlântica, a Serra do Mar, as comunidades tradicionais da região, o Petar, e entrei pela primeira vez em uma caverna.
A minha primeira caverna foi muito difícil. Começava com um buraco no chão, descia um metro e meio e saía no escuro, dentro de um abismo de 20 metros, descendo em uma escada de cabo de aço e degraus de alumínio. Depois a gente chegava em um rio subterrâneo, seguia por 80 metros de teto baixo. Eu tinha uma barba muito grande nessa época e fiquei literalmente com as barbas de molho. E no fim saímos em um salão enorme, ornamentado, lindíssimo. Nessa hora eu me escutei falando para mim mesmo: é isso! Tinha descoberto uma coisa que eu nem estava procurando, nem tinha ideia que existia. Mas eu sabia que aquilo era para sempre. Tanto que essa experiência mudou a minha vida de vez.
Em abril de 2022 aconteceu em Brasília o 36º Congresso Brasileiro de Espeleologia, e fizeram uma surpresa muito emocionante pelos meus 50 anos de cavernas. Já fui presidente da Sociedade Brasileira de Espeleologia duas vezes. As cavernas mudaram minha profissão, minha relação com a natureza, com as pessoas. Junto a isso se colocaram para mim as questões das comunidades tradicionais da Mata Atlântica.
Ou seja, eu realmente comecei a atuar na parte ambiental por causa das cavernas. Fiz especializações em áreas protegidas, manejos de recursos naturais, viajei pelo mundo afora, virei um “mix de profissões”. E continuo com esse perfil do século XIX, naturalista, de misturar as coisas. O que acho que foi um enorme privilégio para a minha vida. Desejaria isso para todos os meus filhos.
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Com o amigo, Scala, em uma de nossas explorações pelas cavernas brasileiras (Foto: Arquivo pessoal de Clayton Lino)
Manifestação pela proteção das cavernas, em frente ao STF, após o 36º Congresso Brasileiro de Espeleologia (Foto: Arquivo pessoal de Clayton Lino)