Entrevista com Malu Ribeiro: A boiada não vai passar na Mata Atlântica

31 de March de 2022

Por Mônica Ribeiroagenda da água por muito tempo esteve no horizonte de Maria Luísa Ribeiro, mais conhecida como Malu, no trabalho com a SOS Mata Atlântica. Depois de um bom tempo à frente da causa de Água na organização, ela assumiu, em 2021, a área de políticas públicas e advocacy da Fundação. E sua trajetória parece estrategicamente talhada para a nova função. Bacharel em comunicação, a jornalista que ao longo da carreira se especializou em políticas públicas, gestão ambiental e recursos hídricos, atualmente representa a sociedade civil na vaga das entidades ambientalistas do Conselho Estadual de Recursos Hídricos-SP e no Comitê de Bacias Hidrográficas dos Rios Sorocaba e Médio Tietê, colegiado em que exerceu a vice-presidência por três mandatos. É também membro do Grupo Executivo do Observatório de Governança da Água (OGA); do GWP Brasil (Parceria Brasileira pela Água) e do CONSOC (Conselho da Sociedade Civil) no BID, o Banco Interamericano de Desenvolvimento.  Às vésperas das eleições que definirão os rumos das políticas ambientais do país e seu lugar no ambiente internacional – o Brasil foi do protagonismo à irrelevância e exemplo a não ser seguido nos últimos anos –, Malu identifica como grande desafio fazer com que meio ambiente - especialmente, as agendas de clima, água, proteção e restauração da floresta e áreas protegidas - sejam prioridade na agenda estratégica do país.  Precisamos mostrar como o modelo atual de governo e a composição do Congresso Nacional colocou o Brasil na contramão, com muitas pautas de desmonte socioambiental. As consequências desses erros político-administrativos são sentidas na perda de vidas humanas, de nossos patrimônios naturais, no impacto às florestas, à água e à biodiversidade. Temos que virar essa página trágica da nossa história.”  [caption id="attachment_1090645259" align="alignnone" width="640"] Foto: Arquivo Pessoal
Dentre as legislações que afetam de modo negativo os biomas e a segurança hídrica e das pessoas, Malu realça a importância de reverter o PL 2510/2019, aprovado no Senado, que permite que governos locais regulamentem o tamanho das APPs (Áreas de Preservação Permanente), o que subverte o pacto federativo no que diz respeito às florestas e à proteção dos rios. Esse texto vai gerar conflitos, insegurança jurídica e agravar tragédias anunciadas, pois essas áreas de APP são áreas de risco, sensíveis e suscetíveis a enchentes, deslizamentos e assoreamentos. Esse risco, presente no novo Código Florestal, foi ampliado agora com esse Projeto de Lei. Mas ela também aponta como caminho o empenho em promover legislações positivas, como a aprovação do PL 784/19, que incentiva a criação de RPPNs (Reservas Particulares de Patrimônio Natural); a Lei do Mar, que protege o bioma marinho; e a Proposta de Emenda à Constituição PEC 06/2021, que inclui o acesso à água potável dentre os direitos fundamentais dos brasileiros e brasileiras. Além da movimentação para conter as agendas de retrocesso no Congresso Nacional, com mobilização da sociedade.  Não é à toa que o lema na SOS Mata Atlântica, presente na nossa bandeira, é: estão tirando o verde da nossa Terra. O próprio governo brasileiro atenta contra a Lei da Mata Atlântica. E, para defender o bioma e a lei especial que o protege, estamos atuando com organizações parceiras em ação junto ao Supremo Tribunal Federal. A boiada não vai passar na Mata Atlântica", ressalta.   Foto: Arquivo Pessoal Você assumiu a área de políticas públicas e advocacy da SOS Mata Atlântica no ano passado. Quais as expectativas para a atuação nessa nova área? A nossa estratégia para a incidência política em defesa da Mata Atlântica, neste ano eleitoral, é mostrar a importância da agenda ambiental para o Brasil. A mudança climática, ao mesmo tempo que exige ações efetivas voltadas à adaptação e a um novo modelo de desenvolvimento, oferece oportunidades para o nosso país. O Brasil detém uma mega biodiversidade, uma das maiores reservas de água doce do Planeta e já ocupou papel de liderança no cenário internacional na área ambiental. O desafio é fazer com que o meio ambiente e a restauração florestal sejam prioridade na agenda estratégica do país. Precisamos mostrar como o modelo atual de governo e a composição do Congresso Nacional colocou o Brasil na contramão, com muitas pautas do desmonte socioambiental. As consequências desses erros político-administrativos são sentidas na perda de vidas humanas, de nossos patrimônios naturais, no impacto às florestas, à água e à biodiversidade. Temos que virar essa página trágica da nossa história Você trabalhou muito tempo com a agenda de água na SOS Mata Atlântica, e em uma chave que não é óbvia para as pessoas - plantar floresta é plantar água... Quando se afasta a ciência e a sociedade da governança do país, o resultado é esse que estamos vivendo. Áreas que necessitam de gestão integrada ficaram fragmentadas. Não há água sem floresta. Para a segurança hídrica é urgente recuperar a Mata Atlântica, conter o desmatamento na Amazônia e no Cerrado e proteger as áreas úmidas. Foto: Arquivo PessoalA Amazônia está em evidência nos últimos anos com desmatamento em alta e outras atividades predatórias, assim como o Pantanal. Como vai a Mata Atlântica em relação a desmatamento e regeneração? Os nossos biomas são interdependentes. É preciso proteger todos e usar os recursos naturais de forma sustentável. Porém, a Mata Atlântica é o bioma mais ameaçado do país. Não é à toa que nosso lema na SOS Mata Atlântica, presente na nossa bandeira, é “estão tirando o verde da nossa Terra”. Além disso, o próprio governo brasileiro atenta contra a Lei da Mata Atlântica. E, para defender o bioma e a lei especial que o protege, estamos atuando com organizações parceiras, como ISA, WWF, Rede de ONGs da Mata Atlântica e Abrampa (Associação Brasileira dos Membros do Ministério Público de Meio Ambiente), em ação junto ao Supremo Tribunal Federal. A boiada não vai passar na Mata Atlântica. Qual o papel das empresas e do agro nessa equação de desmatamento e regeneração? Esse setor tem a responsabilidade de cumprir o Código Florestal brasileiro e avançar em uma agricultura de baixo carbono. É fundamental que ele incorpore soluções da natureza para a sustentabilidade. A pressão pelo desmantelamento da legislação ambiental traz consequências desastrosas para a sociedade, para o país e, principalmente, para o próprio setor. O uso indiscriminado de veneno e o desrespeito às Áreas de Preservação Permanente, por exemplo, geram impactos graves à saúde humana, aos rios e mananciais e ao ambiente. Esse modelo de agro não é pop. Foto: Arquivo PessoalComo avalia a aplicação da Lei da Mata Atlântica desde a criação? A Lei da Mata Atlântica é uma conquista da sociedade. Além de ser o único bioma brasileiro que conta com uma lei especial para seu uso sustentável e proteção. Essa lei possibilita que 70% da população do país possa viver e desfrutar dos serviços ambientais que essa floresta proporciona, como a água, a estabilidade do solo, a qualidade do ar e a biodiversidade. Além disso, a Lei da Mata Atlântica garante a participação da sociedade na sua governança, por meio dos conselhos municipais de meio ambiente, colegiados do Sisnama (Sistema Nacional do Meio Ambiente) responsáveis por elaborar e implementar os Planos Municipais da Mata Atlântica. Os instrumentos de gestão e aplicação da lei especial do bioma permitem que União, estados e municípios trabalhem de forma integrada na proteção e uso sustentável da floresta. É responsabilidade e dever da União garantir a aplicação correta da lei e dar condições aos estados, municípios e sociedade participarem da sua governança.  Recentemente foi aprovado o PL 2510/2019 no Senado, que permite que governos locais regulamentem o tamanho das faixas de APP (Área de Preservação Permanente). Se aprovado, como impactará áreas de Mata Atlântica? Pode contribuir para agravar desastres como o que aconteceu recentemente na região serrana do Rio? É preciso reverter esse retrocesso no Supremo Tribunal Federal. Essa lei subverte o pacto federativo no que diz respeito às florestas e à proteção dos rios. Essa proteção é dever da União e dos estados. Os municípios podem legislar, de forma suplementar, sendo mais protetivos. Esse texto vai gerar conflitos, insegurança jurídica e agravar tragédias anunciadas, pois essas áreas de APP são áreas de risco, sensíveis e suscetíveis a enchentes, deslizamentos e assoreamentos. A proteção determinada no Código Florestal de 1965 seguiu critérios científicos, e a versão atual já fragilizou as APPs de margem de rios, que foram diminuídas com a adoção de metragens a partir da vazão média dos rios e não da máxima. Esse risco, presente no novo Código Florestal, foi ampliado agora com essa emenda. Foto: Arquivo PessoalEm quais outras políticas públicas que interferem na conservação da Mata Atlântica devemos ficar de olho? Temos que nos empenhar por legislações positivas, como a aprovação do PL 784/19, que incentiva a criação de RPPNs (Reservas Particulares de Patrimônio Natural); e a Lei do Mar, que protege o bioma marinho. Temos Projetos de Lei de desmatamento zero, de redução de agrotóxicos e a Proposta de Emenda à Constituição PEC 06/2021, que inclui o acesso à água potável dentre os direitos fundamentais dos brasileiros e brasileiras. E conter a agenda de retrocessos no Congresso Nacional, com mobilização da sociedade, a exemplo do Ato pela Terra, contra os projetos da destruição no Senado. Dentre eles, a lei geral do licenciamento ambiental – PL 2159/2021, que afeta diretamente a vida de todos os cidadãos de hoje e as futuras gerações Historicamente, a SOS Mata Atlântica tem trabalhado, em anos eleitorais, com estratégias que buscam comprometer candidatos com a causa da biodiversidade e da Mata Atlântica. O que esperar esse ano? Esperamos que a pauta ambiental e a agenda emergencial do clima estejam no centro do debate político. Que a sociedade escolha candidatos e candidatas que permitam restaurar os princípios fundamentais da nossa Constituição Federal de 1988, no que diz respeito ao direito humano ao ambiente equilibrado, e reconstruir a participação da sociedade, o respeito às instituições, à democracia e à transparência. Foto: Arquivo PessoalComo promover o meio ambiente e a emergência climática em um debate eleitoral tão polarizado como o que se desenha? O nosso grande desafio é mostrar que a agenda ambiental é estratégica, não só para a segurança climática e para resiliência nas nossas cidades, das nossas atividades produtivas, para a manutenção da vida com qualidade, mas principalmente para o desenvolvimento. Então, para um país que está tão penalizado como o Brasil, com tantos problemas, e mesmo com essa polarização política, a agenda ambiental tem que fazer parte da agenda de todos. Não é uma agenda de esquerda ou de direita, mas uma agenda para o Brasil e para o mundo. Meio ambiente é um direito, e como tal precisa ser resguardado e viabilizado pelo poder público com corresponsabilidade e participação de todos os setores – produtivo, econômico, comunidade científica, comunidades tradicionais, cidadãos e cidadãs em geral. Você participou do Ato pela Terra, que aconteceu em Brasília, no mês de março, e reuniu artistas, movimentos e coletivos da sociedade civil contra os retrocessos ambientais e de direitos dos povos indígenas do país. Como avalia o papel do engajamento da sociedade e a participação cidadã nessa agenda? O Ato pela Terra, convocado pelo Caetano Veloso, foi um show de mobilização. Reacendeu essa vontade de todos nós de estarmos nas ruas por causas que realmente valem a pena. É uma satisfação muito grande ter estado neste ato, levando a nossa bandeira da SOS Mata Atlântica, e ver a felicidade das pessoas em sentir que a bandeira do Brasil é nossa. É de todos os brasileiros e brasileiras e não de um partido político. Ela não pode ser apropriada por um segmento político. Essa manifestação é um modelo de como recuperar a chama da cidadania que estava perdida, sufocada, tolhida com tanta repressão e represada por dois anos de pandemia, nos quais tivemos que nos manter em nossas casas, sem encontros presenciais. E é só o começo. O ato reacendeu essa chama, e essa mobilização, essa energia, sobretudo da juventude, vai contagiar as ruas para pautas que realmente importam, como meio ambiente, cidadania e democracia - que também está em jogo nesse momento político que vivemos. Outra questão importante desse tipo de mobilização é que ela une os setores de arte, cultura, educação, ciência, povos originários, principalmente organizações que estão voltadas para a paz. Nós estamos em um momento de guerra, e uma guerra absurda, que não imaginávamos ver depois da pandemia. E a união entre arte e causas é uma celebração do que a gente quer para a vida hoje e para o amanhã. É um momento de convocação, de levar todo mundo para uma ação pelo planeta, pelo nosso país e pela nossa democracia, com meio ambiente e qualidade de vida para todo mundo. Esse foi o sentimento dessa mobilização. A SOS Mata Atlântica, por meio do Viva a Mata, já vem fazendo esse chamamento, colocando temas para a sociedade. Estamos na Década da Restauração dos Ecossistemas e estaremos nas ruas, presentes em todos esses movimentos, mostrando que a restauração da Mata Atlântica e o fim do desmatamento na Amazônia e nos outros biomas são estratégias urgentes para o enfrentamento dessa emergência climática que estamos vivendo.