Gunther Furtado e Teresa Urban*
Durante estes últimos meses, têm sido contadas diversas histórias da carochinha e outros tantos contos de fada sobre os efeitos do Código Florestal Brasileiro como ele está hoje ou como ele ficará com as alterações defendidas pelos grandes proprietários de terra brasileiros. Mas que ninguém se engane: este não é um projeto somente da famosa e famigerada parcela mais atrasada destes proprietários.
Uma primeira falácia a ser tratada é que a disputa em torno do Código Florestal é uma briga entre ambientalistas e ruralistas. Sim, claro está que estes grupos acima estão em campos opostos quanto a questão, mas reduzir a questão a estes dois grupos, esconde o que de fato está em jogo: deve ou não haver regras que limitem o poder do proprietário sobre a propriedade? E, com a inevitável resposta positiva, estas regras devem ser de quê tipo e devem ter quais objetivos?
A aplicação efetiva do Código Florestal é indiferente para a empresa agrícola de grande porte. Vejamos:
Tome-se duas áreas, uma de mil hectares, com, digamos, 25% de sua área legalmente protegida, 20% da reserva legal mais margens de rio e topos de morro: e outra, com 750 hectares e sem um centímetro quadrado sequer de área protegida. Para o investidor - dono de uma quantidade determinada de dinheiro que quer aumentar -, não há a menor diferença entre investir seu capital para produzir em uma ou outra. O que interessa ao capitalista não são as boas condições de saúde ambiental de um território, mas apenas e tão somente a capacidade que este território tem de produzir, e é apenas e tão somente para isso que o capitalista paga ao usar a terra para produzir.
Então, por que raios os grandes proprietários de terra no Brasil estão tão completamente empenhados em eliminar as restrições que o Código Florestal impõe a esta dita propriedade? Porque o cumprimento destas restrições altera a capacidade de produção - de curto prazo, que esteja bem claro – e estes senhores só enxergam o curto prazo. Desse modo, remover as restrições impostas pelo Código Florestal tem uma consequência que os proprietários de terra levam em grande consideração: aumenta o preço das terras. A curto prazo.
De diagnósticos e tratamentos (doença certa, remédio errado)
Um dos argumentos, talvez o principal, que os grandes proprietários de terra têm usado para defender a necessidade de alterar o Código Florestal é a difícil situação da pequena propriedade familiar para cumprir suas regras. De fato, é possível, e até mesmo provável, que haja, situações em que a pequena propriedade familiar é incapaz de gerar a renda necessária para a manutenção da família, que deve retirar dela seu sustento, e nessa situação costuma-se defender uma flexibilização do Código para permitir que aquela família aumente a área de exploração de sua terra, e há uma série de dispositivos dos órgãos regulatórios que determinam estas flexibilizações. No entanto, estas flexibilizações não podem ser pensadas como solução para as situações em que o Código Florestal é incompatível com a subsistência da pequena propriedade familiar, pelo simples motivo de que, ainda que esta geração de proprietários seja capaz de sobreviver por descumprir o Código, seus filhos não terão o que flexibilizar!
O diagnóstico não está errado pois, de fato, em muitos casos, a pequena propriedade familiar tem dificuldades de cumprir o Código Florestal; o que está errado é o tratamento proposto. A propriedade familiar, enquanto conceito instrumental para formulação de políticas públicas - sejam elas de segurança alimentar, de zoneamento agroecológico, planejamento por bacia hidrográfica ou organização fundiária -, só tem sentido se estiver baseada nas condições reais, efetivamente encontradas no meio rural. As reais condições de produção e comercialização da produção e a relação que isto guarda com a manutenção da produção familiar e de pelo menos parte das futuras gerações no campo é que se deve levar em conta para a determinação de que tamanho e localização deve ter a pequena propriedade familiar. Se a pequena propriedade familiar precisa, para ser viável hoje, cair no descumprimento do Código não haverá medida alguma que lhe permita sustentar uma família maior, quando a próxima geração chegar, com o agravante de que as terras não se tornarão mais férteis a medida em que se destrua a cobertura vegetal e, consequentemente, as nascentes, os rios e encostas que as florestas protegem.
A ameaça forânea
Não faz o menor sentido sequer cogitar que a defesa do Código Florestal Brasileiro seja uma iniciativa dos “outros países” que estariam tentando impedir que a nossa brava gente fazendeira nos torne para sempre campeões em produção de insumos agrícolas. Ora, quem nos vende o veneno, quase qualquer veneno, com o qual inundamos nossas plantações e aparelhos digestivos? Quem nos vende a semente transgênica e sem futuro que nos seduz e acorrenta?
E, por outro lado, alguém realmente espera que a Rainha da Inglaterra esteja urdindo planos mirabolantes para transformar a ilha em grande exportador agrícola? Como é de conhecimento de quase todo mundo, há, na história recente da humanidade, uma divisão internacional do trabalho e o que serviço que cabe ao Brasil no concerto das nações é precisamente o de celeiro do planeta. Portanto, se há algum interesse estrangeiro no Código Florestal Brasileiro é no sentido de alterá-lo, como aliás comprovam as participações de transnacionais produtoras de insumos agricolas e de reflorestamento no financiamento das campanhas dos ruralistas.
Três fantasmas pairam sobre as florestas brasileiras
Pois então, se não é para dar liberdade aos intrépidos entrepeneurs rurais deste Brasil varonil, que, de resto, têm a explicar qual o motivo de serem os campeões mundiais em utilização de venenos agrícolas; se a pequena propriedade familiar não será salva pela flexibilização do Código; se não são os “interesses” estrangeiros que querem nos impedir de destruir nossas florestas: o que está acontecendo, afinal?
Grana! Sigamos a grana! (1)
O que há, de novo, hoje, que pode justificar a urgência em alterar a lei que regula e normatiza o exercício da propriedade rural é o amazônico apetite chinês por terras no Brasil. É precisamente por isto que os donos de terra no Brasil estão organizada e poderosamente tentando retirar quaisquer barreiras legais ou de outra ordem que funcionem como uma barreira para que os preços da terra no Brasil subam e atinjam o máximo possível. Este é um projeto dos fazendeiros, para que eles possam vender suas terras pela maior quantidade de grana possível, e, assim, deixar de ser fazendeiros.
Há, ainda, como é impossível não perceber, uma notável perda de importância na percepção da Europa como mercado potencial para nossas exportações. O que ocorre é que a Europa, com seus consumidores exigentes e informados, sempre foi o grande motivo que levou as empresas exportadoras brasileiras a buscar certificações e o Código Florestal sempre serviu de base para concessão destes certificados. Por enquanto, nada disso é necessário para exportar para China! E cumprir regras desta sorte não é exatamente uma expertise do dragão chinês.
É ao terceiro fantasma que talvez melhor se aplique o apelido: temos uma Constituição que foi feita com toda boa intenção dos primeiros tempos de volta à democracia e que carrega em si muitos dispositivos legais que são, por uma série de fatores, muito mais modernos do que a prática quotidiana do povo brasileiro e, hoje, a parcela deste povo que detém o poder econômico parece estar se organizando para desconstruir os dispositivos que, de uma maneira ou outra, atrapalham a consecução do que consideram seus legítimos interesses. O Código Florestal, pioneiro no reconhecimento da supremacia do interesse público sobre direito privado, pode ter sido simplesmente um ensaio do que vem por aí, pode ser um fantasma, mas...
E o que o Brasil quer ser quando crescer?
O silêncio do governo sobre assunto que lhe diz total respeito – o uso e a ocupação de milhões e milhões de hectares do território nacional – pode significar que quem cala, consente. Ou mais, que enquanto os ruralistas contam histórias da carochinha, o PAC, em parceria com o setor privado, realiza o maior investimento da história na Amazônia. Segundo levantamentos da FSP, o pacote de investimento para os nove Estados da região, até 2020, já soma R$ 212 bilhões. “Basicamente, são obras de infraestrutura (energia, transporte e mineração). Juntas, elas criarão condições para a instalação de indústrias e darão origem a um corredor de exportação pelo "arco Norte", que vai de Porto Velho (RO), passando por Amazonas, Pará, até o Maranhão. Essa movimentação de cargas será feita por uma malha logística integrada por rodovias, ferrovias e hidrovias que reduzirão custos de exportação, principalmente para o agronegócio” (2).
Correndo à margem da discussão ambiental, os planos rasgam a floresta para assegurar o escoamento da produção que, inevitavelmente, será feita em terras onde antes, nos tempos da carochinha, existia a maior floresta tropical do planeta.
(1) Todos os Homens do Presidente – Alan J. Pakula, 1976
(2)
http://www1.folha.uol.com.br/fsp/mercado/me1610201102.htm
*Gunther Furtado é economista e Teresa Urban é jornalista.