por Luís Fernando Guedes Pinto, Diretor Executivo da SOS Mata Atlântica
e Vivian Ribeiro, líder do time de Inteligência Geoespacial da Trase
* artigo publicado originalmente no Valor Econômico.
Um dos cinco principais hotspots da biodiversidade global, apontada como uma das dez principais referências do mundo pela Década da Restauração de Ecossistemas da ONU, a Mata Atlântica segue ameaçada pelo desmatamento.
O
sistema de alertas de desmatamento para o bioma desenvolvido pelas SOS Mata Atlântica e pelo Mapbiomas identificou 48.660 hectares de matas cortadas entre janeiro e outubro de 2022. Isso corresponde à emissão de 23,3 milhões de toneladas CO
2 equivalente e uma ameaça para a conservação de muitas espécies em risco de extinção -- das mais de 20 mil espécies que ocorrem no bioma, 6 mil são endêmicas, ou seja, só existem na Mata Atlântica. Essa floresta também tem papel fundamental para o fornecimento de água para milhões de pessoas, para a geração de hidroeletricidade e para a produção de alimentos.
O desmatamento está concentrado em regiões de expansão da agropecuária, como em Minas Gerais, Bahia, Piauí e Mato Grosso do Sul. Também está presente em áreas agrícolas tradicionais e de fronteira teoricamente consolidada, como no Paraná e em Santa Catarina. É complementado pela soma de uma colcha de pequenas áreas desmatadas em torno das grandes metrópoles e regiões litorâneas do Brasil.
A iniciativa
Trase, que traz transparência às cadeias de fornecimento das principais commodities agropecuárias associadas ao desmatamento, apontou em seu último relatório que em 2020 havia 22.338 hectares de soja na Mata Atlântica em áreas que foram desmatadas entre 2015 e 2019. Quase metade dessa soja (46%) foi, potencialmente, exportada para a China, enquanto 44% foram consumidas no mercado brasileiro, com o envolvimento de diversas traders – muitas delas com compromisso de desmatamento zero em suas cadeias produtivas.
Ressaltamos que o resultado é restrito aos limites da Mata Atlântica, pois a Trase analisa o desmatamento a partir da delimitação dos biomas do IBGE e não considera o Mapa de Aplicação da Lei da Mata Atlântica, que inclui ainda áreas críticas para o desmatamento na fronteira do bioma com o Cerrado e com a Caatinga na Bahia, em Minas Gerais, no Mato Grosso do Sul e no Piauí.
Um estudo lançado em novembro de 2022 na Conferência do Clima no Egito mostrou que o bioma Mata Atlântica responde por
mais da metade da produção agropecuária e de alimentos do Brasil, tanto de commodities para exportação como, principalmente, de culturas alimentares de consumo direto no país. No bioma se cultiva 32% da soja, 46% da cana-de-açúcar, 68% de tomate, 63% da banana e 61% da cebola, além da presença de 27% do rebanho bovino nacional.
Infelizmente, como apontado pela Trase, parte dessas cadeias produtivas ainda está marcada pelo desmatamento. O relatório anual do Mapbiomas complementa essa informação com o dado de que mais de 90% do desmatamento na Mata Atlântica tem indícios de ilegalidade. Vale destacar que o bioma é reconhecido como Patrimônio Nacional pela nossa Constituição e protegido por uma lei especial, publicada em 2006.
A
Lei da Mata Atlântica somente permite desmatamentos em situações excepcionais, quando houver interesse social ou de utilidade pública – o que não se justifica para a expansão da agropecuária e no contexto de um bioma que passa ao mesmo tempo por crises hídricas e é vítima dos desastres das chuvas intensas resultantes do aquecimento global e das mudanças climáticas. Não faltam exemplos de desabastecimento de água, como observado na região metropolitana de Curitiba, e de desastres, como o caso recente do litoral norte do estado de São Paulo.
Se o desmatamento zero é urgente e uma necessidade para o Brasil, o que dizer da Mata Atlântica, que começou a ser desmatada em 1500 e passou por diversos ciclos econômicos de exploração e destruição? Sua agenda deveria ser exclusivamente a da restauração florestal. Além de ser apontada como uma referência,
um ecossistema-bandeira pela Década da Restauração de Ecossistemas da ONU, a Mata Atlântica é um bioma prioritário no mundo a ser recuperado, por combinar a proteção da biodiversidade, a mitigação das mudanças climáticas e a conservação da água.
Essa restauração deveria ser guiada pelo Código Florestal, política que tem a implementação em passos lentos desde a publicação da sua nova edição em 2012. Somente na Mata Atlântica precisamos restaurar ao menos 3 milhões de hectares de matas ciliares, responsáveis por proteger nascentes e rios e garantir a segurança hídrica para a maior parte da população do Brasil. E esse é um trabalho que precisa ser orientado pelas cadeias produtivas agropecuárias relevantes no bioma, como da soja, da pecuária, do café, da cana-de-açúcar e da laranja. Empresas líderes dessas cadeias e suas associações têm que puxar esse movimento.
O fim do desmatamento da Mata Atlântica e de todos os biomas brasileiros é fundamental para os nossos compromissos com o Acordo de Paris e para acordos comerciais como o da União Europeia-Mercosul. É relevante também para o futuro das exportações agropecuárias brasileiras para a China, de onde uma comitiva da agropecuária nacional acaba de retornar prometendo commodities livres de desmatamento. Semanas antes, o mesmo compromisso foi sinalizado aos Estados Unidos e reforçado com a Noruega, países que, para além dos interesses comerciais, podem nos apoiar com o financiamento para alcançarmos o fim do desmatamento.
Porém, ignorando o contexto geopolítico, os interesses comerciais, as oportunidades internacionais e os nossos compromissos, a Câmara dos Deputados acaba de aprovar
uma medida provisória que adia novamente a implementação do Código Florestal, ameaçando o futuro da restauração dos ecossistemas brasileiros. Além disso, trouxe consigo jabutis que atacam frontalmente a Lei da Mata Atlântica ao flexibilizar o desmatamento do bioma mais destruído do Brasil. O Congresso novamente nega a ciência, ignora a emergência climática e da biodiversidade, ameaça oportunidades de negócios e compromete o futuro das próximas gerações.
Neste contexto, mais do que nunca, as cadeias produtivas de commodities agropecuárias, em vez de ainda ter envolvimento com o desmatamento, deveriam ser protagonistas da restauração, da agricultura de baixo carbono e de uma produção de alimentos regenerativa. Só assim seremos capazes de garantir que serviços ecossistêmicos essenciais para à população e nossa economia, contribuindo para um futuro climático justo e seguro.
Foto de capa: plantação de soja no Rio Grande do Sul / Wikimedia.