A Câmara dos Deputados aprovou hoje o maior jabuti da história em uma Medida Provisória, com uma emenda de Plenário que destrói a Lei da Mata Atlântica, legislação aprovada em 2006 para proteger o bioma mais desmatado do país. A MP 1150/2022, enviada ainda durante o governo Bolsonaro, adia pela sexta vez o prazo para os proprietários de terra se adequarem ao Código Florestal e formalizarem o compromisso em realizar a restauração ou compensação da vegetação nativa desmatada para além dos limites permitidos pela lei. Porém, o deputado Sérgio Souza (MDB-PR), ex-presidente da Frente Parlamentar Agropecuária (FPA), incluiu novas emendas na proposta, entre elas a que altera a Lei da Mata Atlântica.
O dispositivo relacionado à Lei da Mata Atlântica altera o artigo 14 da lei do bioma para permitir o desmatamento de vegetação primária e secundária em estágio avançado de regeneração; acaba com a necessidade de parecer técnico de órgão ambiental estadual para desmatamento de vegetação no estágio médio de regeneração em área urbana – a decisão sobre a supressão da vegetação será feita pelo órgão ambiental municipal; acaba com a exigência de medidas compensatórias para a supressão de vegetação fora das Áreas de Preservação Permanente (APP), em caso de construção de empreendimentos lineares – como linhas de transmissão, sistema de abastecimento público de água e, possivelmente, até condomínios e resorts; além de acabar com a necessidade de estudo prévio de impacto ambiental e de coleta e transporte de animais silvestres para a implantação de empreendimentos lineares.
“A Câmara esfacelou a Lei da Mata Atlântica, adicionando uma emenda de plenário a meu ver inconstitucional. Na prática, essa aprovação recoloca o Brasil na contramão do que o mundo espera. Favorece e amplia o desmatamento, afasta o país dos compromissos internacionais do clima, da água e da biodiversidade. O único bioma brasileiro que conta com uma lei especial foi desrespeitado por bancadas alheias às necessidades da sociedade neste momento de emergência climática. Vamos tentar reverter esse retrocesso no Senado e, se preciso, mobilizar a sociedade para que o presidente Lula vete a MP em defesa da Mata Atlântica", afirma Malu Ribeiro, diretora de Políticas Públicas da Fundação, SOS Mata Atlântica.
Luís Fernando Guedes Pinto, diretor executivo da Fundação, chama a aprovação na Câmara de “tragédia”. “De um lado libera o desmatamento e, do outro, acaba com a restauração florestal. Esta MP é a pá de cal do Código Florestal, que foi aprovado há dez anos e até agora não havia sido implementado como deveria”, ressalta.
O governo Lula se comprometeu com o desmatamento zero em todos os biomas até 2030, porém a aprovação na prática impede que a meta seja atingida. Para piorar, de acordo com Raul do Valle, diretor de Justiça Ambiental do WWF Brasil, o texto aprovado desprotege as áreas mais importantes e raras da Mata Atlântica — com vegetação primária, que nunca foram desmatadas ou que estão em recuperação há muitos anos.
“Isso acontece porque deixa de exigir que o empreendedor (de rodovias, linhas de transmissão etc.) analise se há vegetação primária antes da instalação da obra. Hoje, quando isso acontece, ele tem de indicar uma rota alternativa, que não descaracterize aquela área. Isso, por si só, já seria um desastre. Mas há mais retrocesso: o texto incentiva a expansão urbana sobre a área de preservação permanente, ao retirar as poucas salvaguardas que existem na legislação, inclusive já fragilizadas no fim de 2021, quando o Congresso mexeu nesse mesmo dispositivo, ao permitir que qualquer rio pode ser ocupado se a legislação municipal permitir. Sabemos que órgãos municipais costumam ser muito mais suscetíveis à pressão dos empreendimentos imobiliários”, ressalta.
Maurício Guetta, consultor jurídico do Instituto Socioambiental (ISA), também avalia que há inconstitucionalidade. "A redação aprovada está cheia de contrabandos legislativos, com diversos retrocessos, sem relação com o tema original da medida provisória. Ao fazer isso, além de incorrer em inconstitucionalidade formal, o texto propõe verdadeiro desastre ambiental para o pouco que sobrou da Mata Atlântica, para as Unidades de Conservação e, inclusive, para áreas de risco no entorno de rios. Em meio a tantas tragédias, como a que vemos hoje no Acre, a Câmara se volta contra a população brasileira e o meio ambiente para beneficiar meia dúzia de interesses empresariais”, disse.
Em relação à alteração na lei de Unidades de Conservação, como parques e reservas, Valle explica que foi tirado o poder do órgão regulador de definir as zonas de amortecimento no entorno de áreas que precisam ser protegidas.
A deputada Fernanda Melchiona (PSOL-RS) se manifestou no plenário e destacou que “não se pode aceitar jabutis” na Câmara dos Deputados. “Não foi uma ou duas vezes, e aqui é um jabuti gigante. Só que nós fomos surpreendidos pelo relator pois ele incorporou ao texto-base, então não é um destaque que vai destruir a Mata Atlântica, é o texto-base que vai ser votado, e isso é importante alertar aos parlamentares. Porque o que está sendo votado no texto (...) é justamente a possibilidade de acabar com a Mata Atlântica em estágio de vegetação médio e avançado por grandes obras de infraestrutura. Estão botando na lata do lixo o acordo que o Brasil fez na COP e inviabilizando assim a meta de chegar ao desmatamento zero. Isso vai permitir o aumento do desmatamento no bioma e não honrar compromissos assumidos, num bioma dos mais atacados, mais diversos”, disse ela.
Código Florestal
Roberta del Giudice, do Observatório do Código Florestal, disse que a aprovação da MP “envia um comando de que a lei vai ser prorrogada eternamente, que as normas não precisam ser cumpridas”. “E manda, ainda por cima, uma mensagem para fora do Brasil que nós não vamos parar de adiar nossa lei, não vamos implementar nosso Código Florestal”, disse.
Para Valle, além de adiar mais uma vez o prazo de adesão dos proprietários de terras ao Cadastro Ambiental Rural para fazer restauração, a MP adicionou um entrave: ela estabelece que, para se iniciar esse processo, todos os cadastros precisam ser analisados e validados. “Não há qualquer tipo de benefício para que os proprietários possam seguir voluntariamente. Mais uma vez, desmoraliza a lei ao travá-la.”
A bancada do PT votou a favor da MP e contra as emendas. “Declaramos novamente aqui, fugindo do que foi construído no texto principal, a partir dessas emendas complicadas, (...) orientaremos pelo veto do presidente Lula. Do jeito que está ficando não teremos outro caminho, votaremos a favor do texto e contrário às emendas”, afirmou Airton Faleiro (PT-PA).
*Com informações do Observatório do Clima e Observatório do Código Florestal