Entrevista: Lenine
27 de April de 2023
por Mônica C. Ribeiro
Foram elas, as orquídeas, e a criação do espetáculo Rizoma junto com o filho Bruno, que ajudaram Lenine a passar “pela pandemia e pelo pandemônio”, em suas palavras. No espetáculo, o músico resgata canções de todos os discos que fazem sentido para o que ele quer reverberar nos dias de hoje.
Usando o conceito dos filósofos pós-modernos Gilles Deleuze e Felix Guattari, Rizoma diz respeito à possibilidade de abertura do pensamento, o que remete à expansão das raízes da planta.
Tudo muito botânico, como o próprio Lenine, ele mesmo estudioso e colecionador de orquídeas. Em seu orquidário repousa um verdadeiro "mapa do Brasil” traduzido pelas epífitas que foi coletando ao longo de seus shows. Lá, cada planta tem uma etiqueta que informa a espécie, área de ocorrência, bioma, lugar em que foi colhida e o show realizado.
Ligado à natureza e a seus fluxos desde a infância em Recife (PE), com o convívio do mangue e do mar, o músico tem emprestado a imagem e a voz a várias organizações ambientalistas, tais como Projeto Tamar, WWF-Brasil e a própria Fundação SOS Mata Atlântica. “Sou muito solidário e cúmplice desse povo do bem que está fazendo alguma coisa efetiva, como ser humano, em prol do planeta. Me envolvo mesmo, é meu lugar de fala, eu diria. Porque tem a ver com a minha vida toda”.
Em entrevista à SOS Mata Atlântica, Lenine relembra a época em que produziu o álbum Carbono, momento em que conheceu muitas organizações ambientalistas com atuação fora das capitais, com pouca visibilidade ao trabalho desenvolvido, e quando neutralizou as emissões de carbono do álbum com o plantio na Área de Proteção Ambiental (APA) Guapimirim, nas cidades de Guapimirim e Itaboraí (RJ).
“É bom poder reverberar isso, porque atualmente estou num certo momento, não vou dizer misantropo, porque é pesado demais, mas sofrendo uma certa desilusão com o ser humano. Poder lembrar desses seres humanos, que para mim devem ser a referência, os guias, realmente o centro das atenções, me faz bem demais. Conheci saberes e grupos de pessoas que entregaram suas vidas num caminho coletivo lindo e em benefício da mãe Terra”.
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Lenine participa de soltura de tartarugas.
Ao mesmo tempo, Lenine destaca a importância de as pessoas terem a real noção do momento vivido pelo planeta, em que nossa espécie, com nosso modo de estar no mundo, está mexendo muito com o equilíbrio planetário. “Todos os sinais estão nos mostrando. O processo está se acelerando, e não é uma progressão aritmética. É geométrica. Os saltos são cada vez maiores. Até o momento em que vai ficar impossível para a gente viver do planeta. A natureza sempre descobre uma maneira de sobreviver. A gente é que está fora da equação”.
O músico relembra o primeiro contato com o Projeto Tamar e com a Fundação SOS Mata Atlântica, se considera desconfiado da capacidade do ser humano e diz ter dificuldade em imaginar o futuro: “Se há dez anos me falassem que, em um futuro próximo, a gente ia voltar a uma idade média, eu não iria acreditar. E eu vivi minha idade média agora, no século 21. O que posso dizer é que tenho muita esperança nessas pessoas humanistas, que têm a natureza como foco da sua dedicação. Eu, como elas, acredito que a gente pode fazer uma diferença e se adequar ao ecossistema”.
Você é muito conectado com a natureza. Ela está presente em suas músicas, ações e projetos com os quais se envolve. Como começou essa relação?
Desde a infância. Porque sendo eu de Recife, tive muito contato com o mangue. Ao longo desses anos destruíram muito desses manguezais originais que permeavam todas as cidades – Olinda, Recife, Igarassu e Itamaracá, mas todas essas primeiras povoações estavam sempre dentro de mangue. Então o mangue de alguma maneira me inseriu dentro dessa compreensão, primeiro das estações. De como essa fauna reage com as estações. Isso tudo foi pela vivência, notadamente a compreensão de que ali no mangue, onde a podridão era evidente, também era evidente a formação da nova vida. Ali era o grande berçário. Eu nem me recordo quando se deu essa compreensão, porque eu vivia no mangue. Por outro lado, uma vivência que também sempre tive, como ali é foz, é que o mar sempre esteve presente.
Mar, maré e mangue, sempre foi praticamente tudo a mesma coisa ali, e o mangue seria o berçário a serviço do mar. Me criei inserido nesse ambiente, e tem realmente uma relação de profundidade, de entender as coisas, de saber das marés, de conhecer a época do agulhão, a época em que se pode pegar lagosta. Uma relação com o mar entendendo todas essas nuances de cada espécie, de cada coisa. Isso tudo me chegou muito cedo.
E por outro lado, meu pai, que era um ateu cristão – nunca vi uma combinação tão maravilhosa – quando questionado, lá nos primórdios, quando meio ambiente começou a ser uma preocupação, sobre que planeta íamos deixar para os filhos, nos ensinou a fazer essa pergunta de uma outra maneira. Ele perguntava que tipo de filhos íamos deixar para o planeta. Então acho que essa conjugação também com a paternidade e maternidade, [meus pais] eram um casal muito à frente de seu tempo, e a proximidade com a natureza exuberante, foi a química.
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Clipe de "Leve e Suave".
E no meu orquidário tem também a memória de percorrer esse Brasil com a música que eu faço. Em muitos dos shows que eu fiz ao longo desses anos, viajava com meu equipamento de som, o que queria dizer que eu tinha um caminhão, e usava em benefício da minha coleção de plantinhas. Então, cada uma delas é também uma memória. Cada uma tem uma etiqueta dizendo que espécie é, onde ocorre, tipo de bioma, o lugar em que peguei, a pessoa com quem peguei e o show que eu fiz naquele lugar. É como se fosse um banco de memória da minha vida e que, enfim, tem me ajudado muito a viver de uma maneira mais bacana, com um olhar mais depurado e com mais sensibilidade.