O novo marco regulatório do saneamento básico (
PL 4.162/2019) aprovado no Senado no dia 24/06, por 65 votos a 13, segue para sanção presidencial como uma agenda positiva, capaz de promover avanços significativos para a sociedade, desde que seja dotado de bons instrumentos de regulação, transparência e governança. O texto estabelece como meta para o Brasil que a universalização do saneamento seja alcançada até o final de 2033, quando 99% da população deverá ter acesso à água potável e 90% à coleta e tratamento de esgoto, por meio de investimentos públicos e privados nos serviços de saneamento. Atualmente, 94% dos municípios brasileiros têm empresas públicas à frente dos serviços de saneamento e em apenas 6% das cidades o serviço é concedido para empresas privadas.
Por décadas os investimentos em saneamento não foram priorizados no país e as metas assumidas em compromissos internacionais, como a de promover a universalização do saneamento até 2030 conforme os Objetivos de Desenvolvimento Sustentável (ODS), continuam longe da realidade. O Congresso Nacional elevou o saneamento na agenda de desenvolvimento para o país, respeitando o princípio Constitucional de que
a água no Brasil não pode ser privatizada, por ser um bem de uso comum do povo. Esse princípio, reafirmado na Lei da Política Nacional de Recursos Hídricos (PNRH) que trata a água como bem de uso público e essencial à vida, está garantido. Porém, os legisladores perderam a oportunidade de tratar o acesso ao saneamento básico como
direito humano.
O Brasil é signatário da resolução n°64/292, da Organização das Nações Unidas (ONU), aprovada por votação unânime por 122 países, em 2010 e ampliada em 2015, reconhecendo o acesso à água potável e limpa e ao saneamento como direitos humanos. Esse reconhecimento e as obrigações assumidas pelos países membros são mais amplos do que a universalização dos serviços de saneamento básico e não se limitam ao acesso para aqueles que vivem nas cidades formais e em ocupações humanas regulares. Devem contemplar pessoas em situação de vulnerabilidade e, especialmente as que não tem acesso à moradia, ou à terra. A universalização do saneamento é o primeiro passo para a implementação desses direitos humanos que incluem, além da acessibilidade física e econômica, questões ambientais, de escassez, segurança hídrica e climática.
Ao buscar um texto realista, o novo marco legal prorroga novamente os prazos para fim dos lixões no país, sem definir instrumentos objetivos capazes de evitar o descumprimento das metas pelos titulares do saneamento que continuam sendo os municípios. O fim dos lixões no Brasil já deveria ter ocorrido em agosto de 2014, com base na
Lei 12.305/2010, da Política Nacional de Resíduos Sólidos (PNRS). Agora, com a nova lei, capitais e regiões metropolitanas devem erradicar os lixões no próximo ano; as cidades com mais de 100 mil habitantes, até 2022; em cidades de porte médio, entre 50 e 100 mil habitantes, até 2023; e em cidades com menos de 50 mil habitantes, o prazo é 2024.
O novo texto estabelece a necessidade de licitar os serviços de saneamento para empresas públicas e privadas e garante a manutenção dos contratos em vigor entre municípios e companhias de saneamento, até março de 2022. Permite que os contratos vigentes possam ser prorrogados por mais 30 anos, desde que as empresas comprovem viabilidade financeira para se manterem apenas com a cobrança de tarifas e contratação de dívida e que cumpram as metas.
Para a universalização do saneamento até 2033, especialistas do setor estimam que são necessários investimentos da ordem de R$ 500 bilhões a R$ 700 bilhões, com ingresso da iniciativa privada, por meio de Parcerias Público Privadas (PPPs). O texto legal prevê a prestação de serviços regionalizada incluindo municípios mais e menos atraentes e não necessariamente contíguos em um mesmo território. Dessa forma, diminui o risco de que cidades pequenas e pouco lucrativas não sejam contempladas. Esse desenho, se seguir o recorte das bacias hidrográficas como unidade territorial, pode ser capaz de corrigir graves distorções atuais.
A Agência Nacional de Águas (ANA), voltada a implementação da Política Nacional de Recursos Hídricos (PNRH), será responsável por editar as normas de referência para regulação dos serviços de saneamento. Para essa nova atribuição, a ANA precisa ser estruturada e receber recursos que permitam ampliar seus quadros, sem prejuízos à gestão da água, por meio de uma agência forte e independente.
O sucesso dessa nova legislação depende de bons instrumentos de regulação e governança, da transparência e da participação efetiva da sociedade no acompanhamento e fiscalização dos modelos de contrato, com voz ativa nas discussões sobre tarifas e na qualidade dos serviços.
A universalização do saneamento é um desafio estratégico que deve estar associado à gestão integrada do meio ambiente, dos recursos hídricos, do uso e ocupação do solo, da valorização das florestas como provedoras de água e de serviços ambientais, do combate ao desmatamento e às desigualdades sociais, tão evidentes nesta pandemia.
Além disso, para que esse marco regulatório saia do papel e receba os investimentos necessários, o Brasil precisa recuperar a credibilidade no cenário internacional e garantir que o texto aprovado siga em diante sem vetos que deformem os seus objetivos.